A Teoria do Direito é um prólogo silencioso que antecede toda decisão judicial. Ao menos é o que dizia Ronald Dworkin (1931-2013), um dos mais importantes filósofos da segunda metade do século 20, para quem toda decisão judicial tem antes uma teoria jurídica como fundamento.
Há quem diga que essa tese de Dworkin seria grandiloquente demais, pouco atenta à realidade prática dos tribunais. É uma crítica válida, mas penso que, para além de sua teoria mais abrangente e de sua prosa elegante, Dworkin ajuda a levantar um ponto importante, mais simples (e menos pretensioso) do que parece à primeira vista – e que ajuda a esclarecer algumas das raízes da crise de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF).
Não se trata de defender que todo juiz é um filósofo. O ponto é que, quando juízes decidem casos, suas decisões estarão amparadas em convicções acerca do propósito da prática jurídica como um todo: acerca daquilo que dá sentido ao Direito enquanto tal.
Quando um juiz decide um caso, ele estará articulando parte daquilo que pensa sobre o papel do Direito, sobre a melhor interpretação das leis e dos precedentes aplicáveis, sobre a força normativa de cada um dos elementos que orientam suas razões de decidir. Estará, assim, expressando aquilo que pensa sobre seus limites funcionais, sobre aquilo que o Direito responde e, em última análise, sobre a própria autoridade que tem enquanto membro oficial do sistema jurídico.
Isso nos leva às perguntas sobre o STF. É certo que podemos (e devemos) discutir e criticar, com a disposição crítico-reflexiva que marca o cidadão responsável, esta ou aquela decisão específica, este ou aquele ministro específico. Ocorre que a crítica específica e localizada, por poderosa (e necessária) que seja, pode acabar por se perder até a próxima decisão. Isso na hipótese generosa. Na hipótese mais pessimista, a crítica localizada pode ser marcada pelo mesmo casuísmo que origina a crise de legitimidade do Supremo em primeiro lugar: critico esta decisão que me desagrada, silencio na próxima quando suas consequências me agradam.
Sugiro que a abordagem deve necessariamente ser mais ampla, e que um debate público esclarecido deve promover e fortalecer uma cultura política que nos permita exatamente discutir e argumentar sobre as perguntas fundamentais que, afinal, compõem este prólogo silencioso das decisões judiciais.
O que os ministros do STF pensam sobre os limites de uma corte constitucional? Quais são suas concepções de legalidade? O que lhes parece constituir uma concepção razoável da autoridade legítima por eles reivindicada quando decidem?
Qual é a concepção de Direito que lhes orienta?
Essa pergunta é mais do que um exercício acadêmico. Este é certamente um ponto filosófico, mas isso só reforça que o equívoco está em pensarmos que a filosofia aqui não importa.
É precisamente porque não temos clareza acerca do que um juiz pensa sobre o Direito que não podemos sequer cobrar que ele tenha coerência consigo mesmo, que haja congruência entre aquilo que decide e aquilo que marca sua visão sobre a melhor abordagem interpretativa sobre a prática jurídica.
É isso que permite que um mesmo juiz decida um caso dizendo que “há princípios normativos elevados que justificam o afastamento da letra da lei” e, poucos meses depois, decida dizendo que “o papel do juiz é respeitar o texto legal”. Ora, certas ou erradas, são duas visões possíveis – desde que se argumente em favor delas. O que não é possível é que se escolha qual das duas será usada quando a única coisa que muda é a capa do processo.
Esse não é um exemplo hipotético nem um episódio isolado. Um olhar atento mostrará que, nas grandes questões constitucionais discutidas e decididas em anos recentes, critérios marcadamente extrajurídicos conduziram o raciocínio judicial – sem que se defendessem e justificassem esses critérios, variáveis de acordo com as circunstâncias, como parte do conteúdo normativo do Direito.
Alguém poderia argumentar que o ministro Luís Roberto Barroso é uma exceção. De fato. Há, ali, alguma teoria mais claramente articulada, com maior lucidez, acerca do papel de uma corte constitucional. É certamente um avanço. Como já argumentado por Thomas Bustamante (UFMG), porém, a atitude teórica do ministro Barroso não tem um princípio para explicar quando e de que maneira juízes podem errar – e essa é uma exigência fundamental da integridade, sobretudo numa prática social e institucional que, por mais que tenha um elemento de convencionalidade, não tem membros coletivamente infalíveis sobre seus fundamentos. Uma teoria funciona como orientação do raciocínio jurídico, não como artifício ex post de justificação.
Num mundo ideal, os juízes estarão certos sobre a melhor leitura de nossos direitos, nossas liberdades, nossa Constituição. Como esse dia ainda está longe, já será um avanço quando nossos juízes estiverem claramente errados – mas ao menos errados claramente. Em seus termos. Afinal, “legalidade à conveniência”, nos termos do filósofo Gerald Postema, é quase uma contradição em termos.
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É PESQUISADOR DE PÓS-DOUTORADO NA FACULDADE DE DIREITO DA USP