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Opinião|A cultura do estupro e o caso Daniel Alves

Recente modificação legislativa na Espanha determinou a imediata tomada das medidas cabíveis logo após qualquer notícia de crime de estupro

Por Luiza Nagib Eluf
Atualização:

Conforme noticiário internacional, Daniel Alves, jogador de futebol brasileiro que pertencia ao Pumas, do México, foi preso preventivamente em Barcelona, após ser acusado de agressão sexual contra uma jovem de 23 anos, praticada numa casa noturna de nome Sutton, na cidade espanhola, em 30 de dezembro de 2022. O jogador, no princípio, negou a acusação, mas depois acabou admitindo a prática de sexo diante das evidências apresentadas, mas em sua defesa afirmou que o ato foi consensual, o que contrariou a versão da vítima.

Conforme notícias da imprensa espanhola, os exames médicos e a roupa usada pela moça na ocasião dos fatos constataram a presença de sêmen. Outro indício determinante foi a informação, dada pela vítima, de que o suspeito teria uma tatuagem em forma de meia-lua na parte inferior do abdômen, a qual somente seria visível se ele estivesse despido.

Tanto o Ministério Público local quanto a defesa da vítima pediram a prisão provisória do suspeito, sem direito a fiança, o que foi deferido pela juíza oficiante. Posteriormente, surgiram informações de que o apontado autor do delito teria trocado de advogado e feito pedido de liberdade.

O fato gerou repercussão mundial em razão da atuação imediata da Polícia espanhola. Recente modificação legislativa naquele país determinou a imediata tomada das medidas cabíveis logo após qualquer notícia de crime de estupro. Com base nas novas regras, a vítima foi levada ao hospital, onde recebeu cuidados médicos, e, logo após, foi encaminhada para prestar declarações na delegacia e perante a juíza oficiante. Somente assim foi possível desvendar corretamente o delito praticado.

O crime de estupro é expressamente previsto na legislação brasileira, assim como na maioria dos países ao redor do mundo. O Código Penal Brasileiro o descreve no artigo 213: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena – reclusão de 6 a 10 anos.

§ 1.º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 e maior de 14 anos; Pena – reclusão de 8 a 12 anos.

§ 2.º. Se da conduta resulta morte; Pena – reclusão de 12 a 30 anos”.

Como se vê, a legislação pátria pune o estupro de forma severa, mas nem sempre os dizeres legais foram assim redigidos. Durante as décadas passadas, anteriormente à Constituição de 1988, o crime de estupro foi agraciado com muitas alternativas para proteção do acusado, inclusive com a previsão de perdão ao estuprador quando se casasse com a vítima!

Sabemos que, durante muito tempo, a sexualidade não foi entendida socialmente como a manifestação natural e espontânea do ser humano, mas como instrumento de poder por meio do qual o homem procurava exercer total controle da mulher. Desse prisma, a sexualidade é a arma usada para garantir a desigualdade das categorias sociais às quais pertencem homens, de um lado, e mulheres, de outro. O estupro é uma das manifestações extremas dessa desigualdade, que não é biologicamente induzida, mas socialmente construída.

A violência de gênero desconhece limites: permeia todas as classes sociais, tipos de cultura, desenvolvimento econômico, espaço público ou privado. Tanto pessoas estranhas quanto parentes e amigos podem ser abusadores sexuais em potencial, e não raro a violência ocorre dentro da família. O desrespeito aos direitos humanos no Brasil agravou-se nos últimos anos, e é de espantar o comportamento selvagem daqueles que saíram das sombras para a prática de tenebrosas agressões.

Em geral, a mulher que alega ter sido vítima de violência sexual merece crédito. A probabilidade de ela estar mentindo é a mesma da vítima de roubo, por exemplo. Nos crimes patrimoniais, a palavra da vítima se reveste de grande credibilidade. É ela (a vítima) que aponta o ladrão, o estelionatário, o sequestrador, o atirador, etc. Os casos de estupro devem ser encarados da mesma maneira, dando-se credibilidade à versão da ofendida.

Nenhuma mulher, em sã consciência, dirá que foi estuprada se não o foi. A apuração do crime de violência sexual é muito estressante para a vítima, submete a pessoa a grande constrangimento, tanto na elaboração de perícia médica quanto nas oitivas na Polícia e em juízo. São muitas repetições de declarações, apresentação de provas, narrativas intermináveis, audiências, instâncias judiciais que levam tempo para serem concluídas. Além disso, embora o processo tramite em segredo de Justiça, não são raros os “vazamentos” que se transformam em desgosto para a ofendida e seus familiares.

Por fim, é preciso compreender que jogadores de futebol não são deuses, não “podem tudo”, não devem transgredir as leis e as regras sociais, não serão sempre louvados por todos que lhes assistem nem poderão fazer “gato e sapato” das mulheres que não querem manter relações sexuais com eles.

Quando o poder da fama e do dinheiro sobem à cabeça, o mais indicado é contratar um psiquiatra.

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ADVOGADA, É PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SP APOSENTADA. E-MAIL: LUIZAELUF@TERRA.COM.BR