No mês de aniversário de 30 anos da nossa moeda, que começou a circular em 1.º de julho de 1994, revisitar a engenharia econômica desse plano – que é o acontecimento econômico mais importante da história do País –, se faz importante.
Proposto pelo então ministro da Fazenda, e depois presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Plano Real venceu a hiperinflação da década de 1980 e início dos anos 90 e livrou o País de um contexto econômico conturbado de congelamento de preços, confisco do dinheiro em bancos, entre outros eventos traumáticos. Só para lembrar, o Brasil teve seis programas de estabilização econômica fracassados desde o Plano Cruzado de 1986, o que fazia do Real o sexto plano de combate à inflação em apenas oito anos.
Muitos não entendem até hoje como isso foi possível. Por isso, o foco aqui será uma análise da Unidade Real de Valor (URV) no processo de estabilização inflacionária brasileira. Considerada por muitos a maior genialidade do Plano Real, a URV vigorou no Brasil por quatro meses, de março a junho de 1994.
A URV funcionava como uma unidade de conta, algo como uma moeda virtual, que não existia fisicamente e foi derivada de uma proposta original feita pelos economistas André Lara Resende e Persio Arida em 1984. A URV representou uma alternativa genial ao congelamento de preços e salários que, àquela altura, certamente seria rechaçado pela população.
A lógica era a seguinte: todos os preços em cruzeiro real (CR$), que era a moeda da época, passaram a ser convertidos em URV. O valor da URV, por sua vez, era divulgado todas as manhãs pelo Banco Central (BC). Observe que a URV era indexada, ou seja, mudava diariamente. Conforme estabelecida pela Medida Provisória (MP) n.º 434, de 27 de fevereiro de 1994 – depois convertida na Lei n.º 8.880, de 27 de maio de 1994 –, o valor da URV, em cruzeiros reais, era utilizado pelo Banco Central do Brasil como parâmetro básico para negociação com moeda estrangeira, ou seja, havia uma certa paridade com o dólar americano.
Para exemplificar a noção de estabilidade de preços introduzida pela URV, guarde estas datas e valores: a URV entrou em vigor dia 1.° de março de 1994. Naquele dia, 1 URV valia CR$ 647,50. No dia seguinte, 2 de março, 1 URV valia CR$ 657,50... No dia 30 de junho de 1994, 1 URV era igual a CR$ 2.750,00.
Para fins didáticos, vamos supor que uma garrafa de água mineral gelada, na praia, custasse CR$ 647,50 no dia 1/3/1994 (portanto 1 URV). Considere também que, no dia seguinte, o preço desse produto aumentasse para exatos CR$ 657,50 (novamente 1 URV). Por extensão, supondo que no dia 30/6/1994 essa garrafa de água custasse CR$ 2.750,00, seu preço em URV seria o mesmo: 1 URV (apesar da elevação de 324,71% em cruzeiros reais no período de quatro meses).
Dessa forma, a URV teve um importante efeito de descontaminação psicológica da inflação, livrando da mente das pessoas a memória inflacionária que o cruzeiro real carregava. O terreno para a chegada da nova moeda estava pavimentado. No dia 1.° de julho de 1994 sai de cena o cruzeiro real para a entrada nas novíssimas cédulas e moedas do real. Naquele dia 1 URV passou valer R$ 1.
Naturalmente, os preços dos produtos e serviços não pararam de aumentar a partir da introdução do real, mas a inflação foi drasticamente reduzida. Por exemplo, no último ano do cruzado a inflação atingiu quase 10.000%. Em 1998, ano em que FHC foi reeleito em primeiro turno, a inflação foi de 1,6%. Nenhum outro país do mundo usou algo como a URV para debelar a inflação. Foi uma ideia genuinamente brasileira.
Além da URV, o Plano Real teve outros pilares fundamentais para a estabilização dos preços, como a definição de metas monetárias, adoção de uma taxa de juros (em níveis que poderiam ser contracionistas) e do câmbio valorizado frente ao dólar americano. Desses, a valorização cambial merece aqui um destaque.
A medida provisória que implementou o Real (MP n.º 542, de 30 de junho de 1994, depois convertida na Lei n.º 9.069, de 29 de junho de 1995) dispunha que a paridade a ser obedecida seria de um dólar americano para cada real emitido. Apesar disso, nos primeiros dias de vigência do real, o dólar americano era cotado a R$ 0,93. Em outubro daquele ano chegou ao valor de R$ 0,827. Na prática, a sobrevalorização do câmbio era possível porque o Banco Central definia a taxa de venda dólares no mercado – enquanto a taxa de compra do BC sempre flutuava para baixo. O real valendo mais que a moeda americana, de um lado, barateava as importações e, do outro, desestimulava as exportações, o que também ajudava a domar a inflação, de forma que a administração da taxa de câmbio foi fundamental para manter os preços comportados.
No entanto, se essas medidas de política econômica listadas até aqui fossem tomadas de maneira individualizada, não teriam o poder de atingir o objetivo amplo de estabilização dos preços. Apenas para citar duas variáveis importantes, um câmbio sobrevalorizado, por si só, não tem o mesmo poder de controle dos preços se não estiver associado, por exemplo, a uma taxa de juros inibidora do consumo e do investimento – sem contar que a venda de moeda estrangeira pelo BC representa queima de reservas internacionais. Portanto, a inter-relação entre as políticas monetária, cambial e fiscal deram consistência macroeconômica ao Plano Real.
Por fim, há de se ressaltar que, além da engenhosidade econômica, o êxito do plano deu-se também por condições políticas favoráveis, com destaque para as negociações com o Congresso conduzidas por Edmar Bacha, além de um eficaz processo de comunicação com a população. O fim do regime de câmbio sobrevalorizado no final de 1998/início de 1999 deixou a inflação aos cuidados do tripé macroeconômico: câmbio flutuante, adoção do regime de metas para a inflação e superávit primário. A criação do Comitê de Política Monetária (Copom) e a independência formal do Banco Central também ajudaram no processo de estabilização dos preços, que experimentamos até os dias de hoje.
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PROFESSOR DE FINANÇAS DA FEA-RP/USP