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Opinião|A falsa antinomia entre ensino público e privado

Se quisermos alcançar um ensino superior relevante e inclusivo, é fundamental que o debate se concentre na qualidade da educação, independentemente da natureza jurídica das instituições

Por Lúcia Teixeira e Rodolfo De Vincenzi

Desde o início deste século o ensino superior privado tem exercido um papel fundamental na oferta de educação acadêmica nos países latino-americanos, especialmente no Brasil. Nos últimos 20 anos, o crescimento das matrículas universitárias em todos os países da América Latina e do Caribe incorporou cerca de 17 milhões de estudantes. As instituições de ensino superior (IES) privadas são responsáveis, atualmente, por formar 55% desses estudantes, sendo que especificamente no Brasil o porcentual chega a 78%, segundo dados do Instituto Semesp. Ainda assim, a relevância da educação particular parece ainda não ter sido devidamente percebida e legitimada.

É incompreensível, por exemplo, que na declaração final da Conferência Regional de Ensino Superior (Cres+5), realizada pela Iesalc/Unesco em Brasília há apenas quatro meses, o papel das instituições privadas no futuro do ensino superior tenha sido questionado em um parágrafo que recomenda “lutar contra os processos de privatização dos sistemas educacionais em todos os seus níveis, assim como promover e garantir regulamentos e controles que evitem a educação com fins lucrativos”.

Não se trata de criar divergências com o setor público, mas sim de buscar diálogo e união de esforços. Os dois sistemas devem convergir para assegurar uma oferta pública capaz de garantir a inclusão e o acesso ao ensino superior. Com uma taxa de pobreza na região de 32,3%, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em 2022, o debate educação pública versus educação privada é contraproducente em países que precisam atender às carências econômicas e sociais de suas populações, como o Brasil, algo que somente será alcançado com a ampliação do acesso à formação de nível universitário.

A cada dia torna-se mais evidente que o ensino superior como um todo precisa direcionar seus esforços para atender ao objetivo proposto pela Unesco na Conferência Mundial de Ensino Superior de 2022 (“Não deixar ninguém para trás”), um compromisso que requer a colaboração de atores públicos e privados, o esforço dos responsáveis pelas políticas públicas e a iniciativa empreendedora dos cidadãos.

Embora seja inquestionável que a educação é um bem público, não se deve confundir a natureza desse benefício coletivo com a personalidade jurídica das instituições que o provêm. Não apenas no Brasil, mas em todos os países do mundo, há uma elevada porcentagem de universidades privadas que operam sem fins lucrativos. Mas não pode ser ignorado o papel das IES com fins lucrativos, que atuam de forma legítima, conforme a legislação de cada país, e contribuem para o desenvolvimento dos empreendimentos mais bem-sucedidos nas sociedades em que atuam. Senão, seria como se a Universidade da Califórnia, em Berkeley, que é pública, questionasse o papel da Universidade Stanford, ou do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que são instituições privadas.

Há três dimensões que devem ser consideradas quando se aborda o papel do ensino superior privado na oferta de educação acadêmica para a população dos países latino-americanos: a dimensão socioeconômica, a jurídica e a de governança. Na América Latina, assim como no Brasil, as IES privadas são geridas por empreendedores que têm criado valor crescente na sociedade do conhecimento, e em nenhuma dessas dimensões os atores privados têm se mostrado prejudiciais à evolução e melhoria do sistema educacional.

Com relação ao contexto social e econômico há uma evidente desigualdade na região. A proporção da população economicamente ativa (PEA) com estudos universitários completos é de 17% na América Latina, e de 22% no Brasil, índices muito inferiores à média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 37%. A maioria dos alunos na região frequenta instituições do setor privado que, mesmo mostrando a dinâmica do ensino ofertado, registram déficits significativos em termos de permanência e graduação dos estudantes, notadamente devido à falta de sistemas de financiamento educacional. Há necessidade de estratégias mais eficazes para garantir não apenas o acesso, mas também a permanência e a continuidade nos estudos, assim como a integração desses cidadãos a uma vida profissional produtiva para eles e para a sociedade. Não se pode esquecer que, segundo dados da Unesco, 16,4% dos jovens de 15 a 24 anos na região não estudam nem trabalham, porcentual que no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023, considerando a população entre 15 e 29 anos, chega a 19,8%.

Sobre a natureza jurídica das IES e seu papel na educação como bem público, o sistema privado tem sido fundamental na oferta de vagas, ocupando os espaços que o Estado não atende, como demonstram os números apresentados, e sua presença só não é maior por falta de capacidade de financiamento. E as IES particulares têm contribuído grandemente para aumentar a cobertura, diversificar a oferta e gerar inovação e adaptabilidade da educação superior.

Quanto à governança, a gestão da maioria das IES privadas se baseia em modelos nos quais a eficiência e a concorrência são priorizadas, com foco em indicadores de qualidade e em uma oferta acadêmica alinhada com as necessidades do mercado de trabalho. Essa abordagem promove empregabilidade e requer um alto nível de prestação de contas, que por sua vez contribui para a melhoria geral do sistema educacional.

Tanto as IES públicas como as privadas têm papéis cruciais a desempenhar, e é fundamental que o debate se concentre na qualidade da educação oferecida e na prestação de contas à sociedade, independentemente da natureza jurídica das instituições, se quisermos alcançar um ensino superior relevante e inclusivo, tanto no Brasil quanto em toda a América Latina e o Caribe.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTES DO SEMESP, ENTIDADE QUE REPRESENTA MANTENEDORAS DE ENSINO SUPERIOR NO BRASIL, E DA REALCUP, REDE QUE CONGREGA ASSOCIAÇÕES LATINO-AMERICANAS E CARIBENHAS DE UNIVERSIDADES PRIVADAS

Opinião por Lúcia Teixeira

Presidente do Semesp

Rodolfo De Vincenzi

Presidente da Realcup