Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião | A fome na agenda nacional e internacional do Brasil

O mercado não resolve o problema da fome e da pobreza; é preciso de política e política pública

Por Isabel Rocha de Siqueira

Usando o momentum gerado pela presidência do G-20, o governo brasileiro anunciou a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. É hora de lembrar as boas práticas nesse campo, mas também nos certificarmos de que a agenda seja acompanhada de discussões políticas fundamentais. No Brasil, Josué de Castro já alertava para a natureza política da fome há quase cem anos.

Como mostramos no dossiê A fome na agenda nacional e internacional do Brasil, mesmo antes da pandemia de covid-19, já era claro que os esforços de combate à fome eram insuficientes: a Organização das Nações Unidas (ONU) aponta que desde 2015 já se identificava um aumento alarmante da fome no mundo. Depois da pandemia seguimos vendo uma tendência de desaceleração no ritmo de redução da insegurança alimentar, em grande parte causada pelo alto preço dos alimentos, problema enfrentado hoje por mais países do que no período de 2015 a 2019, segundo mesmo relatório.

A resposta não pode deixar de ser política. Documento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional resume o que deveria ser premissa dessa agenda: “A fome é associada majoritariamente à extrema pobreza, mas ela é também uma expressão das nossas desigualdades, sua consequência mais grave e perversa”. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2023 indicam que 4,1% da população está em insegurança alimentar grave e 5,3% convivem com insegurança alimentar moderada no Brasil, e a fome é maior justamente nas áreas rurais, o que dá a medida das desigualdades de que falamos e também da necessidade de pensar os problemas para além da produção.

Segurança alimentar e nutricional são indissociáveis da ideia de sistema justo de produção e distribuição, conforme artigo 3.º da Lei 11.346/2006, que trata ainda da qualidade dos alimentos. Nesse espírito, é importante refletir, por exemplo, sobre o fato de que, até 2022, soja e milho cresceram em volume de produção e área de cultivo, enquanto alimentos essenciais na dieta da população brasileira, como feijão, arroz e mandioca, em geral cultivados pela agricultura familiar, tiveram redução. Ou ainda sobre o fato de que o Brasil hoje figura como o maior consumidor mundial de agrotóxicos, tendo visto aumento de 161% no consumo entre 2009 e 2022, com crescimento acelerado já em 2015.

A aliança não será um fundo, nem será gestora de um, mas cumprirá, dentre outras, a função de matchmaking, unindo doadores e países interessados através de uma “cesta de políticas” e outras ferramentas. O Brasil pode oferecer liderança em prol da garantia de direitos básicos, mas é imprescindível reconhecer erros passados e fortalecer a participação social para que os interesses de grupos econômicos mais fortes, como do agronegócio ou grande parte dele, não levem a mais um pacote orientado para soluções de mercado. O mercado não resolve o problema da fome e da pobreza, como fica claro; é preciso de política e política pública.

*

DIRETORA DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS (IRI) DA PUC-RIO

Opinião por Isabel Rocha de Siqueira

Diretora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio

Tudo Sobre