No início de outubro de 2021 foi aprovado pela Câmara projeto de lei que desfigurou a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), o qual seria aprovado no fim daquele mesmo mês pelo Senado e se transformaria na Lei 14.230/2021.
No processo de votação participaram diversos parlamentares que respondiam a dezenas de processos por improbidade administrativa relacionados a superfaturamentos e desvios de dezenas de milhões de reais. Mesmo diante do evidente conflito de interesses, não se declararam impedidos de votar, ainda que diretamente beneficiados pelo projeto despenalizante.
Uma das cenas mais marcantes desse debate parlamentar dizia respeito ao tema do nepotismo. Alguns deputados federais tiveram a desfaçatez de defender em plenário a eliminação das respectivas punições, por mais absurdo que isso pudesse parecer, por mais afrontoso que isso fosse à Constituição federal, à ordem jurídica e aos princípios gerais de Direito, da democracia e da ética republicana.
Repercutiu, especialmente, uma entrevista concedida à época ao Estadão pelo então líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, enaltecendo as supostas características positivas do nepotismo como virtuoso sistema de gestão administrativa, como se simplesmente não existissem meritocracia e impessoalidade.
Ao final dessa via-crúcis, ao menos a punição ao nepotismo foi preservada, mas muitas outras punições foram extintas, como as das improbidades culposas, praticamente todas as improbidades por violação dos princípios administrativos, “de boiada” – a urgência de votação foi aprovada em oito minutos e não houve sequer uma audiência pública para debater o sorrateiro substitutivo, que literalmente desfigurou o projeto original, contra o qual votou sintomaticamente seu autor, o deputado Roberto de Lucena.
De lá para cá, nesses últimos três anos o número de ações de improbidade despencou, diante do esmagamento da lei, que estabeleceu a camarada prescrição retroativa e prazo exíguo para investigações para o Ministério Público, mesmo que os casos envolvam dezenas de investigados, com colheita de provas até internacional. Ou seja, impunidade garantida por lei.
Ao mesmo tempo, estimulados pela nova regra extremamente suave em relação à proteção ao patrimônio público e pela inacreditavelmente vacilante interpretação política sobre o nepotismo, enxergou-se uma suculenta janela de oportunidade.
Os governadores ou ex-governadores vêm emplacando as nomeações de suas esposas para o cargo vitalício de conselheira do Tribunal de Contas do Estado (TCE), com atribuição de fiscalizar contas públicas, inclusive as dos maridos, dividindo, na prática, o bolo do poder.
Pesquisas do Latinobarómetro chileno, a esse respeito, apontam que para mais de 90% dos brasileiros os detentores do poder utilizam-no aqui para autobenefício, o que contribui decisivamente para a deterioração dos níveis de confiabilidade das instituições públicas e para a erosão do próprio sistema democrático.
Onélia Santana, mulher do ministro da Educação, Camilo Santana, ex-governador do Ceará, psicopedagoga, acaba de ter seu nome referendado pela Assembleia Legislativa, consolidando essa prática política. É o sétimo caso que evidencia a intenção de captura patrimonialista de poderosos cargos públicos com interesses politiqueiros, divorciada daquilo que interessa à sociedade.
A enfermeira baiana Aline Peixoto, mulher de Rui Costa (ministro-chefe da Casa Civil) foi nomeada conselheira do TCE-BA; Rejane Dias, mulher de Wellington Dias, ex-governador do Piauí e hoje ministro da Assistência Social, foi nomeada conselheira do TCE-PI, assim como Marília Góes, mulher de Waldez Góes, ex-governador do Amapá e atual ministro do Desenvolvimento Regional, foi nomeada conselheira do TCE-AP. Renata Calheiros é mulher de Renan Calheiros Filho, ex-governador de Alagoas e atual ministro dos Transportes – foi nomeada conselheira do TCE-AL.
Além delas, Daniela Barbalho, mulher do atual governador do Pará, Helder Barbalho, foi nomeada conselheira do TCE-PA, e Simone Soares de Souza, mulher de Antonio Denarium, governador de Roraima, foi nomeada conselheira do TCE-RR.
Em relação ao tema mulheres utilizadas no jogo do poder, lembremos que há dez anos, nas eleições de 2014, para o governo do Mato Grosso, do Amapá e do Distrito Federal, os candidatos José Riva, Neudo Campos e José Roberto Arruda sabiam desde o início que seriam barrados pela Justiça Eleitoral porque eram fichas-sujas (Riva tinha mais de cem ações de improbidade). Mas permaneceram no páreo enquanto foi possível e, perto das eleições, indicaram as mulheres. No caso do Amapá, a cilada deu certo e Suely Campos foi eleita.
Governadores e Assembleias Legislativas parecem desconsiderar a Constituição federal e a plena vigência do princípio da impessoalidade, da moralidade, da ética administrativa e da prevalência do interesse público.
Para não haver dúvida, talvez o ideal fosse edificarmos regra constitucional inequívoca a esse respeito, vedando a prática em nome da ética. Especialmente porque o nefasto e inacreditavelmente sobrevivente nepotismo não tem ideologia, beneficiando a direita, a esquerda e o centro.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’