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Opinião|A intransitividade da transição energética

Os programas e projetos têm totais condições de serem desenvolvidos sem complementos na forma de novos subsídios para os consumidores de energia pagarem

Por Mariana Amim

A transição dos padrões energéticos para opções de baixas emissões de carbono é um dos principais desafios do nosso tempo, exigindo investimentos gigantescos da maioria dos países para substituir fontes de energia fósseis por opções neutras em termos de emissões do poluente. As principais iniciativas nessa direção têm focado na instalação de usinas eólicas e solares, mas aos poucos projetos de armazenamento de energia, armazenamento de carbono, hidrogênio verde e novas fronteiras – como as eólicas offshore – completam o cardápio para o enfrentamento das mudanças climáticas.

Felizmente, no caso brasileiro, as mesmas loterias geológica e climática que nos garantiram condições extremamente favoráveis para a exploração da energia hidráulica também nos brindaram com potenciais muito positivos para a produção a partir das demais fontes limpas.

E o melhor de tudo é que, diferentemente da maioria dos países, começamos a incluir essas fontes no nosso parque gerador mais cedo: na prática, nossa transição começou há cerca de 20 anos, com a introdução das novas renováveis por meio do Programa de Incentivo a Fontes Alternativas (Proinfa), que concedeu descontos de, no mínimo, 50% nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição de energia como medida de estímulo à implantação de novas fontes de geração para a diversificação da matriz elétrica, fortemente, então, constituída por grandes usinas hidrelétricas. Além disso, de lá para cá, aos poucos os projetos de solar e eólica passaram a se destacar nos leilões de contratação de energia nova para o mercado regulado, enquanto regras favoráveis para a contratação da energia dessas fontes no mercado livre também estimularam seu desenvolvimento.

Tais medidas foram extremamente eficazes e acentuaram a posição do País entre os protagonistas na produção de energia a partir de fontes de baixo carbono: se até o início dos anos 2000 nossa matriz era majoritariamente hidrelétrica, com pequena participação de térmicas, nas últimas duas décadas ela se diversificou. O avanço da geração térmica registrado no mesmo período – particularmente após o racionamento de 2001 – foi mais do que compensado pelo crescimento sem precedentes das novas renováveis.

Mas é importante registrar que a maior parte desse sucesso foi custeada pelos consumidores de energia, por meio de encargos voltados a subsidiar os investimentos e propiciar a comercialização da energia alternativa a custos superiores aos praticados no mercado.

E mais grave: passados mais de 20 anos do início deste processo, os subsídios permanecem crescentes e com baixa expectativa de término, haja vista a introdução de novos pleitos de agentes setoriais e novos dispositivos legais que perpetuam benesses mesmo quando o custo da implantação e o preço da produção das renováveis já se apresentam bastante competitivos.

Neste contexto, a transição energética que ainda nos cabe fazer é preocupante porque, apesar dos valores excessivos das tarifas de energia, boa parte do setor elétrico segue com o entendimento de que a introdução de novas fontes e a digitalização do setor devem obrigatoriamente ser amparadas por incentivos governamentais. Mais: a expectativa generalizada entre os agentes é de que tais medidas, ao invés de seguirem o rito dos estímulos de cunho econômico-tributário (como seria o caso na maioria das políticas públicas de estímulo), passam pela criação de mais subsídios setoriais, novamente arcados pelos consumidores de energia.

É inegável que são louváveis as iniciativas do governo federal no contexto da transição energética com premissas voltadas para a reindustrialização, o combate à pobreza e a promoção da inclusão social, além do desenvolvimento socioeconômico, adaptação climática e mitigação das emissões poluentes. Mas, para realmente satisfazerem tais premissas, os programas e as ações dessas iniciativas não podem de maneira alguma deixar dúvidas quanto aos responsáveis por seus custos e pelos riscos que eventualmente aloquem ao sistema, muito menos quanto às alternativas do seu custeio que não impliquem novos repasses às contas de luz.

Entre os programas, merecem destaque a Descarbonização da Amazônia e o Programa Nacional de Hidrogênio. O primeiro tem de ser fundamentado na exploração dos bens locais, com o aumento da oferta de energia por meio da interligação dos sistemas isolados ao Sistema Interligado Nacional (SIN) e consequente redução dos custos da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) para o efetivo alcance de sua eficiência e eficácia energética. Implica, ainda, a garantia da qualidade do fornecimento, bem como a combinação de sistemas de geração solar com baterias para as áreas cuja interligação não for possível.

Quanto ao hidrogênio, por sua vez, o programa em desenvolvimento para a produção da nova fonte não pode, de maneira alguma, ser estribado em medida setorial que implique novos custos aos consumidores de energia. Eventuais medidas de incentivo devem ser lastreadas pelo Tesouro Nacional, com expressiva participação do governo, sem qualquer subsídio via encargos.

Por fim, a digitalização de ativos e processos é essencial para garantir sua eficiência e modernidade. Mas, mais uma vez, em se tratando de novas tecnologias e de iniciativas que poderão exigir fortes investimentos, há que cuidar para que essa conta não fique somente sob a responsabilidade do consumidor, até porque não será o único beneficiado pelo processo.

A gramática da Língua Portuguesa nos ensina que os verbos intransitivos não necessitam de complementos para fazerem sentido. Esse mesmo entendimento tem de ser aplicado à transição energética: seus programas e projetos têm totais condições de serem desenvolvidos sem complementos na forma de novos subsídios para os consumidores de energia pagarem.

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É DIRETORA DE ASSUNTOS TÉCNICOS E REGULATÓRIOS DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS CONSUMIDORES DE ENERGIA (ANACE)

Opinião por Mariana Amim