A prisão em 19 de março do prefeito de Istambul, Ekrem Imamoglu, principal líder da oposição e candidato à presidência da Turquia, mostra que o regime de Recep Tayyip Erdogan dá mais um passo no sentido de se tornar uma autocracia plena. Membro fundador da Otan, a Turquia tem papel importante na geopolítica global, pela região em que se situa e pelo papel ambivalente que joga entre as grandes potências.
A decisão de Erdogan de dar um passo decisivo na direção da autocracia é parte do novo contexto global que se vai delineando com rapidez desde a posse de Donald Trump. Mais um sinal claro de que as transformações das políticas interna e externa dos Estados Unidos terão graves consequências para a democracia no plano internacional. A erosão deliberada dos pilares da democracia norte-americana caminha de mãos dadas com o completo abandono pelos Estados Unidos da ordem liberal cuja construção o país liderou após a Segunda Guerra Mundial.
Nem a democracia americana nem a chamada ordem liberal podem ser idealizadas. Entre outros defeitos, a primeira ainda hoje preserva uma relíquia do século 18, o Colégio Eleitoral, que impede a eleição direta do presidente da república. Já a ordem internacional erguida depois de 1945, seja na sua concepção, seja na sua aplicação, jamais representou um obstáculo suficiente para que os Estados Unidos exercitassem o seu poder de potência dominante ou hegemônica, à sua conveniência.
Ainda assim, quando essa ordem desmorona, importa reconhecer o que estamos perdendo e os imensos riscos que essa perda acarreta. É inegável que sem o Plano Marshall e a Otan a Europa ocidental teria enfrentado dificuldades muito maiores, talvez intransponíveis, para consolidar regimes democráticos avançados, na segunda metade do século 20. Mais provável teria sido o domínio soviético se estender para além da Cortina de Ferro (contido, paradoxalmente, facilitou a formação dos Estados de bem-estar na Europa ocidental). Vale lembrar que a Europa do leste só se livrou de regimes autocráticos e Estados policiais pouco antes do colapso final da União Soviética, quase 50 anos depois do fim do conflito mundial.
No mesmo período, em outras regiões do mundo, os Estados Unidos apoiaram golpes de Estado e ditaduras amigas, enquanto durou a guerra fria. Porém, junto com a Europa, eles desempenham papel importante na chamada “terceira onda democrática”, iniciada ao fim da década de 1970, seja por não interferir, como no caso da América Latina, seja por apoiar, como no caso do leste da Ásia e da Europa do leste, processos de transição para a democracia.
Em resumo, em matéria de democracia e direitos humanos, o mundo que conhecemos nos últimos 80 anos teria sido bem pior se o desprezo pelas instituições multilaterais e pelos valores democráticos, típicos do que Trump representa, tivesse orientado a política externa americana.
A ruptura interna e externa dos Estados Unidos com a chamada ordem liberal se dá num momento em que ela já se encontrava gravemente enfraquecida. O espectro de um sistema internacional dividido em esferas de influência dominadas por grandes potências autocráticas (Estados Unidos, China e Rússia) ronda o mundo.
Engana-se quem acredita que, com Trump, os Estados Unidos serão menos intervencionistas. Ele e seus aliados se mexem para apoiar forças de extrema direita na Europa e na América Latina, valendo-se do governo americano e de grandes oligarcas, como Elon Musk, uma fusão entre poder político e econômico que ameaça a democracia e a economia de mercado nos Estados Unidos e em outros países.
O pesadelo de uma ordem global autocrática despertou a Europa da sua letargia. O fortalecimento da União Europeia é indispensável para reverter a maré montante da autocracia. O desafio do Velho Continente está em compatibilizar o aumento dos gastos em defesa e a adoção de políticas de competitividade, tais como as recomendadas pelo Relatório Draghi, com a preservação/atualização do Estado de bem-estar social. Para vencer esse desafio, os membros da União Europeia precisam agir em conjunto, com objetivos e mecanismos de financiamento comuns. O que era muito difícil antes de Trump se tornou mais provável em resposta ao abandono da aliança atlântica pelo novo ocupante da Casa Branca. As forças democráticas da centro-direita à centro-esquerda europeia parecem dispostas à convergência.
Para a América Latina, em geral, e para o Brasil, em particular, interessa o fortalecimento da União Europeia. Temos atritos comerciais, mas temos complementaridade econômica e, não menos importante, um lastro comum no compromisso com a defesa da democracia e a proteção dos direitos humanos. Cá, como lá, as lideranças políticas democráticas, da centro-direita à centro-esquerda, precisam entender o que está em jogo. Na política interna, é preciso isolar a extrema direita. Na externa, o indispensável pragmatismo deve se aliar a uma orientação valorativa que reforce a nossa identidade democrática.