Opinião | A memória do Holocausto no Estado judeu

Na ausência de grandes acontecimentos, como foi o julgamento de Eichmann, provocar uma reflexão pública é uma tarefa árdua

Por João Koatz Miragaya

O Estado de Israel teve sua independência declarada três anos após o fim da 2.ª Guerra. O país recebeu quase meio milhão de sobreviventes do Holocausto durante as décadas de 1940 e 1950, uma proporção enorme para um país que, em 1968, chegava a 2,6 milhões de habitantes. Essa massa de imigrantes certamente causava um enorme impacto na mentalidade coletiva local, mas teve de esperar o seu momento para manifestar-se publicamente. As políticas de governo israelenses tinham sua própria narrativa para o genocídio cruel de 6 milhões de judeus, e por anos essa visão silenciou as outras.

Durante os primeiros anos, ser um sobrevivente do Holocausto poderia ser um estigma em Israel. Isso se deve a uma perspectiva do movimento sionista, que pregava que os judeus jamais seriam aceitos como plenos cidadãos na Europa, e os que haviam negado o sionismo e permanecido no continente teriam sofrido as consequências dessa negação. Junto a isso, e não por coincidência, quase todas as revoltas armadas contra os nazistas nos guetos e nos campos foram lideradas por membros de movimentos juvenis sionistas, que, segundo a sua própria narrativa, se recusaram a ir como ovelhas ao matadouro. O recém-fundado Estado de Israel escolheu construir a sua memória sobre o Holocausto exaltando os que resistiram ativamente. A data de memória oficial no calendário israelense remonta ao Levante do Gueto de Varsóvia, e o dia é chamado de Dia do Holocausto e do Heroísmo.

Os sobreviventes, por sua vez, além de passarem pelas dificuldades regulares dos anos 1950, como a pobreza, o racionamento de produtos, as dificuldades típicas de um imigrante e as guerras, ainda lidavam com o julgamento presente nos olhos daqueles que emigraram antes de 1939. Muitos escondiam suas marcas físicas do Holocausto, como a tatuagem marcada a ferro em Auschwitz, ou evitavam falar sobre seu passado. O silenciamento foi uma regra, eventualmente corrompida por gritos durante pesadelos, ataques de pânico e suicídios.

Houve dois casos, todavia, que alteraram a percepção da sociedade israelense sobre o Holocausto. A primeira, quando foi feito o Acordo de Pagamentos, nos primeiros anos da década de 1950, entre o Estado de Israel e a Alemanha Ocidental. O país europeu oferecia indenizar Israel financeiramente pelos danos causados aos judeus durante a 2.ª Guerra. Houve um intenso debate público, e a oposição ao governo, tanto à direita quanto à esquerda, se manifestou radicalmente contra o acordo. Discursos inflamados foram feitos em frente ao Parlamento, deputados foram agredidos. Muitos alegavam que seria uma afronta a quantificação financeira das vidas tiradas, e acusavam a Alemanha Ocidental de tentar ver-se livre dessa mancha em seu passado. Passando por uma grave crise financeira, Israel aceitou o acordo, que não foi aprovado sem que houvesse um amplo debate público.

No entanto, o caso mais significativo para a mudança da percepção social sobre o Holocausto se deu menos de uma década depois. Em 1960, o Mossad capturou o ex-oficial da SS Adolf Eichmann, que vivia escondido em Buenos Aires.

O arquiteto da Solução Final foi levado a Israel, julgado e condenado pela Justiça israelense. Durante o julgamento, milhares de sobreviventes foram entrevistados pela Procuradoria para dar seus testemunhos sobre os crimes nazistas, e algumas poucas pessoas foram selecionadas para depor no julgamento, que foi transmitido em cadeia nacional por rádio. Foi a primeira vez que muitos israelenses foram expostos aos horrores do Holocausto em detalhes, e passaram a ter noção do trauma que essas pessoas levavam consigo. Daí desencadeou-se uma mudança gradual de paradigma do Holocausto na sociedade israelense: muitos resistiram de diversas formas, seja fugindo, contrabandeando comida, se armando ou simplesmente se esforçando para viver.

Em Israel de 2025, nos 80 anos da libertação de Auschwitz, é comum que as escolas levem alunos do ensino médio para uma excursão à Polônia e visitem os campos de extermínio nazistas. Outras delegações de diversas instituições públicas fazem a mesma jornada. Com exceção dos movimentos juvenis sionistas, praticamente todas as excursões focam na morte e no genocídio. A mudança foi drástica: antes era valorizada a resistência e se ignoravam as vítimas, hoje o assunto é a morte, e a vida é deixada de lado. Além disso, o racional por trás de boa parte das viagens é mostrar que o Holocausto existiu porque não havia um país forte para defender os judeus e judias ao redor do mundo, e que ele pode voltar a acontecer caso não sejamos suficientemente incisivos contra os nossos inimigos.

A remodelação da memória coletiva foi uma acomodação à conjuntura, mais um ensinamento do quanto a memória é dinâmica e adaptável. Seus usos, no entanto, seguem servindo a um discurso orientado de cima para baixo, e urge uma reflexão pública nacional sobre que sentido queremos dar à memória do Holocausto no Estado judeu. Na ausência de grandes acontecimentos, como foi o julgamento de Eichmann, provocar uma reflexão pública é uma tarefa árdua, sobretudo em tempos de ufanismo.

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ASSESSOR DO INSTITUTO BRASIL-ISRAEL, MESTRE EM HISTÓRIA PELA UNIVERSIDADE DE TEL-AVIV, É APRESENTADOR DO PODCAST ‘DO LADO ESQUERDO DO MURO’

Opinião por João Koatz Miragaya

Assessor do Instituto Brasil-Israel, mestre em História pela Universidade de Tel-Aviv, é apresentador do podcast 'Do Lado Esquerdo do Muro'