No mundo das finanças a especulação é uma espécie de aposta, geralmente não racional e sem fundamentação empírica, que tem em vista auferir ganhos exorbitantes.
Se no mercado financeiro especular pode ser um atalho para o lucro, o que ganham aqueles que o fazem na área da saúde e da ciência? Há algum sentido em apostar contra o que é feito com o objetivo de salvar vidas?
Temos observado um ataque especulativo contínuo, inexplicável e absurdo à Coronavac, vacina desenvolvida pela biofarmacêutica Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
É necessário esclarecer o contexto em que os ensaios clínicos de fase 3 da vacina foram realizados no Brasil. Diferentemente de outros estudos, o perfil do grupo de 12.500 voluntários que receberam vacina ou placebo foi exclusivamente de profissionais da saúde, pessoas extremamente expostas à infecção, num cenário de altíssima transmissibilidade do Sars-Cov-2.
Diante disso, a eficácia global de 50,7% – e que chega a 62,3% se as duas doses do imunizante forem aplicadas com intervalo igual ou superior a 21 dias – é fantástica, aliada à proteção de 83,8% a 100% observada para os casos que requerem algum tipo de assistência médica.
Mas a quem interessaria promover uma inexistente comparação de eficácia das vacinas, tendo os imunizantes sido testados em cenários epidemiológicos e perfis de voluntários distintos? A ciência ainda não permite esse tipo de correlação e não é possível afirmar que uma vacina seja melhor do que a outra.
Especulou-se sobre a efetividade da vacina entre os idosos. Foi dessa forma que um estudo apresentado recentemente quis pôr em dúvida o potencial da Coronavac na proteção das pessoas com mais de 70 e 80 anos de idade, mas, na prática, o levantamento usou informações sobre casos positivos nessa população após a aplicação das duas doses, sem levar em consideração quantas dessas infecções de fato evoluíram para quadros graves ou óbitos – justamente o que a vacinação busca evitar.
É sabido que vacinas não são barreiras definitivas para infecção. Mais ainda: o fator protetivo de imunizantes na população idosa tende a ser menor do que nos adultos jovens em razão do enfraquecimento do sistema imunológico com o avanço da idade.
A precariedade desse estudo alimentou uma falsa polêmica, suscitando um debate histérico sobre a necessidade de uma suposta “terceira dose” da Coronavac para os já imunizados. O esquema de imunização é completado com duas doses. O que se estuda – para todas as vacinas contra a covid-19 disponíveis – é a possibilidade da repetição anual do ciclo vacinal, como é feito com a vacinação contra a gripe.
A Coronavac tem-se mostrado eficiente em proteger os indivíduos e em reduzir o contágio pelo novo coronavírus na população. Os ensaios clínicos de fase 4 coordenados pelo Butantan em Serrana, no interior de São Paulo, comprovaram que, com 75% da população-alvo imunizada, houve drástica redução da circulação viral e a geração de uma espécie de “cinturão imunológico” na cidade, além de queda de 95% na incidência de mortes, de 80% no número de casos e de 86% nas hospitalizações por covid-19. A pesquisa confirmou o efeito indireto da vacinação, já que foi possível comprovar a proteção de populações não imunizadas, como crianças e adolescentes.
Em relação às variantes, os testes de fase 3, que fundamentaram tanto a aprovação de uso emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária quanto pela Organização Mundial da Saúde, já demonstraram que a vacina induz resposta imune satisfatória contra as cepas P1 – predominante no Brasil neste momento – e P2. É preciso destacar pesquisa divulgada pelo ex-secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde Wanderson de Oliveira que aponta ser a Coronavac a vacina que mais protege contra casos graves de covid-19.
Mais dados do mundo real comprovam a efetividade da vacina na redução da transmissão do Sars-Cov-2, como a vacinação, no início deste ano, de 20 mil profissionais de saúde no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP. Foi possível observar que o número de casos registrados no HC após a vacinação não acompanhou a tendência de crescimento exponencial da doença observado na capital paulista.
Com apoio do governador João Doria, o Butantan, além de ter tornado viável a primeira vacina contra o coronavírus usada pelo Programa Nacional de Imunizações, está montando, mediante doações da iniciativa privada, uma nova fábrica que produzirá a Coronavac de forma integral, com capacidade para entregar 100 milhões de doses por ano. Tal investimento não se justificaria se a vacina não se tivesse comprovado segura, eficaz e eficiente.
A evolução da pandemia de covid pode demandar ajustes pontuais no imunizante, de maneira a aperfeiçoá-lo. Mas é só. Especular contra a Coronavac não leva a lugar nenhum. Quem apostar vai perder.
MÉDICO, CIENTISTA, PROFESSOR DA USP, É PRESIDENTE DO INSTITUTO BUTANTAN