Cresce na sociedade brasileira a luta pela revogação da reforma do ensino médio aprovada em 2017 no governo Michel Temer sob a Lei Federal n.º 13.415. A vitória de Lula na eleição presidencial de 2022 fortaleceu os grupos opositores, na maior parte constituídos por movimentos e setores sociais mais à esquerda do espectro político.
São movimentos diversos, organizações sindicais, influencers, notabilidades acadêmicas situadas mais nas universidades e institutos federais com atuação destacada no campo da educação. Sempre se manifestaram contrários à reforma, mas a conjuntura nacional dominada por forças políticas rivais, sobretudo no período de 2018 a 2022, não lhes era favorável.
Sem conhecer devidamente o assunto, a mídia reproduz o discurso desses setores sem a necessária contraposição e o debate para os esclarecimentos devidos e confronto de opiniões, criando a impressão de um consenso avassalador pela revogação do novo ensino médio.
A oposição à reforma se baseia em palavras de ordem, pressuposições ideológicas e afirmações fora de contexto que, para os que não acompanharam o debate ou não têm familiaridade com o assunto, criam, realmente, a imagem do caos tomando conta do ensino médio pós-reforma.
A título de exemplo: não procedem ou não há dados comprovadores para afirmações como a de que a reforma aprofundou desigualdades, criou centenas de disciplinas que fragmentaram o currículo, forçou o professor de uma área a trabalhar em outra para a qual não tem formação, instituiu o ensino acrítico e desvalorizou o trabalho docente em razão do conceito de “notório saber”, repetido sem o devido cuidado de referenciar a situação à qual se aplica (a da formação profissional).
A luta pela anulação está ancorada em algumas ideias gerais que garantem a unidade do movimento. Começa pela denúncia do que é visto como vício de origem: a apresentação da proposta por meio da Medida Provisória n.º 746/2016, marcada pelo autoritarismo na tramitação e pela ausência de debate com a sociedade. Prossegue indicando o seu caráter excludente, por oferecer aos setores populares um tipo de ensino precário, diferente do que as elites obtêm nos colégios particulares. Denuncia a falta de criticidade do novo ensino, por não tornar obrigatórias as disciplinas de Sociologia e Filosofia e pela diminuição da carga horária de diversas disciplinas básicas. Questiona os itinerários pedagógicos propostos pela reforma, incapazes de dar conta do aprofundamento do ensino em toda a sua generalidade para todos os alunos, assim dificultando acesso igualitário ao Enem. Critica a extensão da escolaridade em tempo integral aos alunos por causa da escassez de recursos para a sua implementação. Denuncia o seu caráter pró-mercado em detrimento da formação humana e integral do estudante, constituindo-se em mais uma ação nos marcos do “neoliberalismo”. E avança para uma série de apontamentos em relação à precarização do trabalho do docente, à hiperfragmentação disciplinar e à fragilidade dos itinerários, sobretudo o da formação profissional.
Para uma compreensão mais equilibrada do que está acontecendo, é necessário considerar um conjunto de argumentos que vai possibilitar um debate mais substancioso e responsável em torno de uma das mais importantes políticas públicas do Estado brasileiro.
Não é possível esquecer a situação do ensino médio brasileiro anterior à reforma: 13 disciplinas obrigatórias, caráter academicista e propedêutico, com enorme dificuldade de servir aos setores populares para acesso ao ensino superior de qualidade ou a alguma habilitação profissional (o popular “nem-nem”). Era o gargalo do sistema educacional brasileiro.
A reforma foi implantada em 2017 e teve muito pouco tempo de maturação. Desde então, o Brasil atravessou dois anos de pandemia, em que o processo educacional foi muito afetado, e por quatro anos de afasia e amadorismo no Ministério da Educação sob a gestão Bolsonaro. Portanto, não houve condições de testar o que foi proposto e que começou a ser implementado há muito pouco tempo.
O discurso que afirma o caráter impositivo da reforma por meio de medida provisória, se não é destituído de razão, precisa ser confrontado com as operações de procedimento legislativo adotado no Parlamento brasileiro. A medida provisória apresentada acolheu muito das proposições que vinham sendo debatidas no Parlamento desde 2012 e que resultaram no Projeto de Lei n.º 6.840 de 2013. O exame dos dois documentos evidencia a similaridade das propostas. O senador Pedro Chaves, relator da matéria, afirmou que no processo de tramitação foram realizadas nove audiências públicas, ouvidos 53 profissionais e estudantes de variadas correntes de pensamento e analisadas 568 emendas, com aprovação parcial ou total de 148 delas.
O que mais espanta, no entanto, na celeuma em curso é a desconsideração das experiências externas no campo da organização do ensino secundário. A reforma de 2017 ajustou a organização do ensino médio brasileiro ao que é reconhecido como as melhores práticas em matéria educacional em vários países, especialmente nos integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): matriz curricular baseada em competências e habilidades, flexibilidade de organização curricular e itinerários formativos à disposição dos alunos. As experiências de Portugal e Espanha, países próximos da cultura brasileira e com histórico recente de reformas no sistema de ensino, podem lançar luz à discussão vigente hoje no Brasil.
O debate e a avaliação da implementação da reforma precisam ser considerados para reprogramação e redimensionamento. Mas não podem ser feitos com açodamento e precipitação, que estão se tornando as marcas do que tem ocorrido por aqui. Tal como ocorreu na aprovação, a anulação da reforma não é ato do Poder Executivo. É prerrogativa do Poder Legislativo, que exige procedimentos há muito claramente estabelecidos.
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É PROFESSOR E ESTUDIOSO DA QUESTÃO EDUCACIONAL