Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|A tragédia do carisma

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula poderia mirar-se nesse exemplo?

Por Paulo Roberto de Almeida

Certos líderes políticos possuem carisma, outros, não. Pode-se perder o carisma original e recuperá-lo. Mas existem características únicas no fenômeno, o que o torna intransmissível a outrem, ainda que discípulo do detentor original.

Winston Churchill adquiriu carisma como jornalista e voluntário nas forças britânicas que lutaram no Sudão e na África do Sul. Tornou-se lorde do Almirantado na Grande Guerra, mas perdeu o cargo no desastre de Dardanelos. Recuperou o prestígio ao se engajar nas forças britânicas que lutavam contra as tropas do império alemão na França. Foi ministro do Tesouro em 1925, mas a insistência em retomar o padrão-ouro na paridade de 1914 levou à crise de 1926, que provocou sua queda. Ficou no ostracismo, clamando contra os totalitarismos da época: só voltou ao poder no desastre de 1940 e na guerra contra o nazismo. A despeito do carisma perdeu as eleições de 1945 para o Labour.

Franklin Roosevelt conduziu os Estados Unidos na depressão dos anos 1930 e na guerra em duas frentes a partir de 1941, mas não transmitiu nenhum carisma a seu sucessor, Harry Truman. Dwight Eisenhower não tinha carisma, mas sim prestígio, como comandante das forças aliadas contra o domínio nazista na Europa. John Kennedy, em contrapartida, adquiriu um prestígio extraordinário por ser o mais jovem presidente da história americana, adquirindo carisma sobretudo ao confrontar os soviéticos no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba.

O vice-presidente Lyndon Johnson, político tradicional do Texas, não tinha nenhum carisma; a guerra do Vietnã demoliu sua imagem, tanto que optou por não disputar novo mandato. O vencedor na disputa de 1968, Richard Nixon, adquiriu prestígio ao reinserir a China comunista no sistema mundial, mas perdeu ao se tornar um vulgar larápio no escândalo do Watergate. Ronald Reagan tinha prestígio vindo de Hollywood; ganhou carisma ao lograr, junto com Margaret Thatcher, implodir a União Soviética; seu vice, Bush pai, foi derrotado na tentativa de reeleição pelo carismático Bill Clinton, um grande animal político (a despeito das escapadas). Barack Obama tinha grande carisma, o que não impediu a vitória de um bizarro outsider, Donald Trump. Seu sucessor em 2020, Joe Biden, vice de Obama, desistiu da reeleição em 2024, pelo peso da idade.

No Brasil, Getúlio Vargas construiu seu carisma pelo controle da máquina de propaganda do Estado Novo. Juscelino Kubitschek ganhou o seu, ao fazer o Brasil crescer “50 anos em 5″, com democracia. O carisma de Jânio Quadros, um populista dos mais notáveis, sobreviveu à renúncia aos seis meses de governo e conseguiu preservar capital político para retornar como prefeito da maior cidade do País. Não se pode dizer que os presidentes militares tenham exibido qualquer carisma, o que tampouco foi o caso do presidente da redemocratização, José Sarney, embora o candidato eleito, Tancredo Neves, tivesse enorme prestígio político ao encerrar 21 anos de ditadura militar. Fernando Collor, o primeiro eleito por voto direto desde 1960, começou com grande sucesso ao dar início a importantes reformas econômicas, mas soçobrou ao serem revelados os negócios obscuros de um assessor.

Não se pode dizer que Itamar Franco, alçado presidente, tenha tido carisma, mas o sucesso do Plano Real levou seu ministro da Fazenda pouco carismático a vencer duas eleições no primeiro turno. Finalmente, chegamos a uma figura política de fato carismática, Lula da Silva, embora eleito apenas na quarta tentativa, depois de esconder seus instintos intervencionistas; reforçou seu lado populista na enorme expansão dos programas sociais criados por Fernando Henrique Cardoso. Saiu ungido por 80% de aprovação popular, o que lhe garantiu prestígio suficiente para retornar ao poder em 2023, a despeito de ter presidido o mais vasto esquema de corrupção da história do País.

No intervalo, uma administradora medíocre, Dilma Rousseff, sem qualquer carisma, conseguiu produzir a maior recessão da história econômica do Brasil. Jair Bolsonaro, por sua vez, era mais um fenômeno fabricado pela manipulação das redes sociais do que um movimento político organizado. A polarização contra o lulopetismo preservou-lhe inusitado prestígio, mesmo em presença de fraudes, malversações e até golpismo. Tal cenário pode suscitar novo embate entre petismo e antipetismo em 2026.

Lula continua com carisma, mais disseminado entre os beneficiários da assistência pública do que entre eleitores de regiões avançadas; os mapas eleitorais do PT confirmam que, dos anos 2000 à atualidade, ele se transformou no partido dos “grotões”. A tragédia do carisma de Lula, que é a de todos os carismas, é o fato de o fenômeno não ser transmissível a qualquer sucessor designado; mas o próprio Lula encarregou-se de sabotar eventuais discípulos dotados de voo próprio.

Biden, ao reconhecer que a idade avançada não lhe facultaria disputar a reeleição, desistiu da empreitada. Lula, que também enfrenta o peso da idade e um carisma declinante, poderia mirar-se nesse exemplo para optar por não enfrentar nova difícil disputa em 2026?

*

DIPLOMATA E PROFESSOR

Opinião por Paulo Roberto de Almeida

Diplomata e professor