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Opinião | A vaquejada e a morte do sertanejo

Decisão do Supremo como que retira da sala de nossas lembranças um retrato querido

Por Aldo Rebelo

“Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo cada um para sua fazenda tangendo por diante as rezes respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas do aboiado...” ‘A vaquejada’, Euclides da Cunha, em ‘Os Sertões’

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a vaquejada é um daqueles episódios capazes de anunciar num pequeno engano uma grande tragédia, ou num inocente sintoma um grave mal. A ação golpeia muito além do rústico esporte equestre praticado pelos nordestinos e, sob outras formas, por brasileiros de todas as regiões onde o homem, o cavalo e o boi ajudaram a construir a formação social brasileira e a identidade nacional.

Em preciosa passagem de Os Sertões, Euclides da Cunha eleva “o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro” à condição de formadores da gente brasileira. E acrescenta sobre o vaqueiro: “Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um atributo supletivo – a fixação ao solo”.

Aliás, é ainda Euclides da Cunha que recorre ao historiador paulista Pedro Taques para cogitar de parentesco longínquo entre o sertanejo, notadamente aquele estabelecido às margens do Rio São Francisco, e o bandeirante. Para os historiadores consultados por Euclides, o vale do São Francisco seria, desde o século 17, uma colônia quase exclusiva dos paulistas e, portanto, de bandeirantes ou seus descendentes. A confirmar a tese do autor de Os Sertões da conjuração do bandeirante, do jesuíta e do vaqueiro na formação do Brasil, quis o destino que fosse exatamente um jesuíta o último representante formal da Igreja a fazer a visita espiritual a vaqueirama insurgente no Arraial de Canudos.

Graciliano Ramos colhe da caatinga o vaqueiro Fabiano para imortalizá-lo nas páginas de Vidas Secas. E Câmara Cascudo faz de vaquejada e vaqueiros temas recorrentes de eruditos ensaios e verbetes sobre história, cultura e folclore do Nordeste e do Brasil.

Pelo menos nos antigos manuais do ginásio, o Ciclo do Gado constava, no capítulo de geografia econômica, como uma das etapas da história econômica do Brasil, com a capital em Oeiras, antiga sede do governo do Piauí. A periodização, que incluía o açúcar, o ouro, o café e a borracha, tinha o efeito didático de exaltar as presenças do homem, do cavalo e do boi na construção material e espiritual da civilização brasileira.

Montado ainda em tempos remotos pelo vaqueiro no sertão nordestino, pelo gaúcho nos pampas ou pelo índio guaicuru, o cavalo projetou sua presença na edificação do Brasil desde que os primeiros exemplares aqui desembarcaram, por determinação de Martim Afonso de Sousa, em São Vicente, e Duarte Coelho, em Pernambuco, na primeira metade do primeiro século da colonização. A propósito dos guaicurus, há uma estátua do índio cavaleiro na entrada da Brigada de Cavalaria Mecanizada (Brigada Guaicurus), em Dourados, Mato Grosso do Sul, homenagem ao comportamento heroico desses índios em defesa do Brasil na Guerra da Tríplice Aliança.

O boi aportou em São Vicente, trazido de Cabo Verde, pelas mãos de dona Ana Pimentel quando dirigia os destinos da capitania. Essa linhagem ficou conhecida como gado vicentino, espalhou-se até o Rio Grande do Sul e contribuiu, com o homem e o cavalo, para forçar a corda do meridiano de Tordesilhas na direção do oeste.

A vaquejada encena uma técnica de manejo usada desde o início da colonização pelos vaqueiros nas criações extensivas para reunir o gado. Estilizada, a técnica converteu-se em próspero negócio do ramo do entretenimento para pequenos e médios criadores de cavalos, e uma rede de seleiros, arreeiros, domadores, tratadores, entre outros.

Essas pessoas perderão, no todo ou em parte, o seu meio de vida. E por mais que digam que elas se podem reciclar profissionalmente, é difícil imaginar um domador de cavalos se convertendo em, vejamos, técnico em informática.

A verdade é que a importação de paradigmas e valores por nossas instituições públicas e privadas (mídia, Executivo, Judiciário e Legislativo) explica melhor a decisão sobre a vaquejada do que a alegada e legítima preocupação com a proteção dos animais.

Por iniciativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e dos governos recentes, o Brasil adotou o paradigma racial americano. Deixamos de ser uma nação miscigenada para nos tornarmos uma nação bicolor de brancos e de negros, já que o IBGE e o governo incorporam os pardos aos negros para efeito estatístico e de políticas públicas.

Decretada a “morte” sociológica, política e jurídica do mestiço, o passo natural seria mesmo a extinção dos seus diversos tipos, entre eles o sertanejo; e no sertanejo, o seu representante mais característico e viril, o vaqueiro, aquele que, surpreendido pelo escritor no drama derradeiro da existência, foi aclamado por sua virtude mais visível: “Antes de tudo, um forte”.

A evolução do manejo nas pastagens nordestinas e do País já reduziu quase à extinção o vaqueiro antigo. Permanece sua memória, história e cultura num baião de Luiz Gonzaga ou numa modinha de Tonico e Tinoco; na rica culinária sertaneja, nas expressões incorporadas ao idioma pátrio e nas festas de vaquejada.

Já se disse que o passado não é o que passou, mas o que ficou do que passou. Assim, a decisão do Supremo como que retira da sala de nossas lembranças o retrato querido de antepassados valorosos: o vaqueiro e o sertanejo.

O que se espera é que as instituições políticas e jurídicas da Nação devolvam ao espaço de nossa memória o quadro estimado de nosso passado comum: a vaquejada.

*Jornalista, foi deputado federal, presidente da Câmara dos Deputados e ministro