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Opinião|A volúvel Constituição de 1988

Deveria tratar-se de um texto forjado para disciplinar maiorias momentâneas e orientar o País em crises de toda natureza

Por Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski

Em outubro passado a Constituição federal de 1988 completou 35 anos de vigência; nesse período foi emendada incríveis 132 vezes. A Constituição é o resultado de um encontro entre Direito e política, por sua hierarquia em relação às demais normas jurídicas, e por seu conteúdo e significado. Disciplina os elementos estruturantes do Estado e os direitos fundamentais; constitui fator de legitimação das regras de funcionamento da sociedade. Por isso mesmo, deveria ser alterada em circunstâncias excepcionais. Somente em 2022 foram promulgadas 14 emendas constitucionais. Note-se que, entre a primeira Constituição, de 1891, e a de 1988, foram promulgadas 49 emendas constitucionais.

A expectativa é que as Constituições vigorem por longo período, mas elas não devem permanecer imutáveis, caso em que deixariam de contemplar as transformações da sociedade. A Constituição de 1946 foi emendada apenas 21 vezes, entre 1946 e 1967. A de 1967, que vigorou até 1988, foi emendada 26 vezes.

A Constituição de 1988, a mais extensa do período republicano, tinha originalmente 245 artigos mais 70 artigos constantes do ato das disposições transitórias. A sua reforma exige a aprovação, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por pelo menos três quintos dos votos dos respectivos membros. O documento não define o intervalo entre os dois turnos de votação. A intenção parece clara: permitir que, entre um turno e outro, a sociedade tome conhecimento das modificações pretendidas e mobilize-se pela aprovação ou pela rejeição da matéria. O regimento interno do Senado Federal estabelece que “o interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis”. Igualmente, o regimento interno da Câmara dos Deputados estabelece que entre os dois turnos deve haver um interstício de cinco sessões. No entanto, ambas as regras não têm sido seguidas, tendo havido pelo menos um caso em que o Senado aprovou emenda constitucional com duas sessões realizadas com menos de uma hora de intervalo. É evidente que admitir que os dois turnos ocorram consecutivamente é retirar um entrave de um processo propositadamente dificultoso.

As emendas constitucionais são especialmente importantes no encaminhamento de questões relativas ao gasto público. Os precatórios eram disciplinados pelo artigo 100 da Constituição, com dois parágrafos, e por um artigo das disposições transitórias. Cinco emendas depois, o artigo 100 tem 22 parágrafos e o tema é tratado em 11 artigos das disposições transitórias.

Outro fenômeno, igualmente nefasto, é o uso de emendas constitucionais para alterar entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF). Este, em 2016, declarou a inconstitucionalidade de lei do Estado do Ceará que regulamentava a vaquejada, por considerá-la crueldade com animais, vedada pela Constituição. Em resposta, o Congresso promulgou a “PEC da vaquejada”, que acrescentou um parágrafo a fim de autorizar tal prática, ainda que de forma oblíqua, excluindo da proibição constitucional “as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais”.

A Carta está repleta de matérias que não possuem dignidade constitucional; o exemplo mais notório é a definição de que o Colégio Dom Pedro II, “localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”. Há ainda outro caso emblemático de uma emenda que foi aprovada em 2019, pelas duas Casas em dois turnos, e que até hoje não foi promulgada.

Todos precisam saber quais direitos e deveres emanam da Constituição; deveria tratar-se de um texto forjado para disciplinar maiorias momentâneas e orientar o País em crises de toda natureza. Tais predicados não se mantêm se as normas constitucionais são modificadas constantemente, como ocorre com a Constituição de 1988. Basta analisar a versão atualizada para encontrar disposições que deveriam estar em leis ordinárias; o texto deveria ter apenas normas estruturantes do Estado, que resistam ao tempo. Há quem defenda que se proceda um processo de desconstitucionalização de muitas dessas disposições, que seriam retiradas e passariam a ser mantidas como leis ordinárias. Dessa forma preservam-se as instituições ao mesmo tempo em que se permite que governos eleitos tenham a possibilidade de promover transformações visando a atingir objetivos consagrados nas urnas. Afinal, alega-se, “democracia é alternância no poder; não faz sentido a Constituição ser enrijecida com as visões do governo do dia”.

É preciso reconstruir a supremacia da Constituição, a fim de que suas normas sejam protegidas e prestigiadas, e que os cidadãos consigam nela ver a orientação maior do nosso sistema de governo e dos nossos direitos e deveres. É preciso alterar o rito de aprovação das emendas constitucionais, para que só sejam usadas em condições excepcionais, com o cuidado e a parcimônia que os brasileiros esperam de seus legisladores.

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Opinião por Horácio Lafer Piva

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