O cenário global tem passado por profundas transformações no setor energético, impulsionado pela necessidade urgente de mitigar os impactos das mudanças climáticas e cumprir as metas estabelecidas no Acordo de Paris. Nesse contexto, o Brasil emerge como um ator estratégico com vasto potencial em fontes de energia renovável, especialmente biogás, biometano e recuperação energética, que têm um potencial de investimentos de R$ 500 bilhões e um papel fundamental na transição energética e na redução de emissões de metano dos setores da agropecuária e urbanos, responsáveis por 90% dessas emissões no Brasil. Recentes acordos comerciais com a União Europeia e a China trazem novas perspectivas para o desenvolvimento desses setores no Brasil, permitindo a entrada de tecnologias de ponta, investimentos robustos e expertise internacional.
O acordo Mercosul-União Europeia (UE), por exemplo, abre caminho para a transferência de conhecimento e para a adoção de políticas públicas inspiradas em modelos bem-sucedidos de países como Alemanha e Dinamarca, referência global no uso eficiente de biomassa e resíduos. Por outro lado, as parcerias com a China, que possui mais de mil usinas waste-to-energy em operação e metas ambiciosas para biogás, oferecem ao Brasil a oportunidade de integrar práticas inovadoras e soluções tecnológicas já consolidadas em um dos mercados mais avançados do mundo.
Essas parcerias internacionais criam um cenário promissor para a expansão da energia dos resíduos no Brasil. Além de representar uma solução viável para a gestão sustentável de resíduos sólidos e o aproveitamento da biomassa de resíduos da agropecuária e urbanos, esses setores podem contribuir significativamente para a geração de energia limpa, a descarbonização da economia e a criação de novos empregos. Contudo, para que o Brasil transforme esse potencial em realidade, será necessário superar desafios estruturais, investir em infraestrutura e implementar políticas públicas robustas que incentivem o desenvolvimento tecnológico e a atração de investimentos.
O acordo Mercosul-União Europeia representa um marco histórico na integração entre os dois blocos, criando novas oportunidades para cooperação econômica, tecnológica e ambiental. Para o Brasil, esse acordo traz a chance de atrair investimentos e tecnologias de ponta em setores estratégicos, como energia renovável e sustentabilidade. Como principal economia do Mercosul, o Brasil assume um papel de protagonismo, especialmente em áreas relacionadas ao cumprimento de metas climáticas, como a redução de emissões de gases de efeito estufa e a transição energética. A experiência europeia pode ser uma grande aliada no fortalecimento do setor energético brasileiro.
Um dos principais entraves ao desenvolvimento do setor de recuperação energética no Brasil é a dependência de aterros sanitários. Enquanto a Alemanha e a Dinamarca proibiram o uso de aterros para disposição de resíduos, priorizando a reciclagem, o tratamento por biodigestão e a recuperação energética (waste-to-energy), o Brasil ainda depende fortemente dessa prática, o que limita o cumprimento das metas do Acordo de Paris.
Nesse contexto, o projeto European Union Climate Dialogues (EUCD) inicia um ciclo virtuoso na troca de conhecimento e experiências entre Brasil e União Europeia. O projeto promoveu estudos comparativos sobre regulamentações e padrões técnicos, relatório de recomendações, quatro workshops e uma viagem internacional com autoridades brasileiras.
Os relatórios técnicos produzidos no âmbito do projeto EUCD destacam as diferenças estruturais entre Brasil e Europa no setor de biogás. Enquanto a União Europeia implementa políticas integradas para estimular o crescimento da produção de biometano, como o REPowerEU, o Brasil ainda carece de uma estratégia nacional robusta. O programa europeu estabeleceu a meta de produzir 35 bilhões de Nm³ de biometano por ano até 2030, enquanto no Brasil a produção diária de biometano é de apenas 400 mil Nm³, o que corresponde a cerca de 0,3% do potencial estimado para o País.
Apesar das dificuldades, iniciativas recentes no Brasil têm buscado mudar essa realidade. O Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten) e o Combustível do Futuro são marcos importantes na regulamentação do setor, estabelecendo metas obrigatórias para a inclusão de biometano na matriz energética nacional. A aprovação desses projetos representa um passo significativo, mas ainda insuficiente para superar as barreiras estruturais que limitam o desenvolvimento do setor. A ampliação de incentivos fiscais e financeiros, como os oferecidos na Alemanha, poderia atrair mais investidores e acelerar o crescimento do mercado.
Nos últimos anos, o Brasil tem fortalecido suas relações comerciais com a China, um dos maiores parceiros econômicos do País. Esses acordos abrangem diversas áreas estratégicas, incluindo energia renovável e gestão de resíduos, setores fundamentais para o cumprimento das metas climáticas estabelecidas no Acordo de Paris.
A China, reconhecida como líder global em tecnologias de recuperação energética de resíduos, possui 1.038 usinas de waste-to-energy em operação, que contribuem significativamente para o aproveitamento energético de resíduos sólidos urbanos. Essa infraestrutura avançada permitiu à China transformar o gerenciamento de resíduos em uma ferramenta eficaz para a geração de energia limpa, evitando a deposição de resíduos em aterros e reduzindo drasticamente as emissões de metano.
A política chinesa para viabilizar o setor de waste-to-energy foi estruturada com base em incentivos financeiros e regulatórios. O governo chinês implementou subsídios diretos para a construção de usinas e criou tarifas de energia específicas para a eletricidade gerada a partir de resíduos, garantindo o retorno do investimento. Além disso, a China estabeleceu metas claras para a redução de resíduos destinados a aterros, obrigando municípios a adotar tecnologias de incineração com recuperação energética. Essas políticas foram complementadas por programas de financiamento a longo prazo e incentivos fiscais para empresas do setor, o que atraiu grandes investidores e fabricantes.
Vale também ressaltar que a China produz anualmente mais de 15 bilhões de Nm³ de biogás e 3 bilhões de Nm³ de biometano, números que refletem o sucesso das políticas de incentivo e a ampla adoção de biodigestores industriais e rurais. Os fabricantes chineses de equipamentos de geração de energia a partir de resíduos, como biodigestores e sistemas de purificação de biogás, estão entre os mais competitivos do mundo.
Empresas como China Everbright International e Beijing Enterprises Environment Group já manifestaram interesse em expandir suas operações no Brasil, trazendo tecnologia de ponta e investimentos substanciais. Além disso, bancos de desenvolvimento chineses, como o Banco Industrial e Comercial da China (ICBC), têm demonstrado disposição para financiar projetos de infraestrutura no Brasil, o que poderia acelerar a construção de usinas de waste-to-energy e biodigestores em todo o País. A transferência de tecnologia e a expertise chinesa permitirão ao Brasil superar os desafios logísticos e técnicos que limitam o setor, ampliando sua capacidade de produção de biogás e biometano.
Esses investimentos chineses também têm o potencial de transformar a gestão de resíduos no Brasil, reduzindo o volume de resíduos destinados a aterros e aumentando a recuperação energética. Com a implementação de políticas similares às adotadas pela China, como incentivos fiscais, metas de desvio de resíduos e tarifas específicas para energia gerada a partir de resíduos, o Brasil poderia rapidamente avançar no desenvolvimento do setor. A parceria com a China representa uma oportunidade concreta para o País não apenas atingir suas metas climáticas, mas também criar empregos, fortalecer a infraestrutura energética e impulsionar a economia verde.
O Brasil está diante de uma oportunidade única para consolidar sua posição como líder global no uso de biogás e biometano, alinhando-se às melhores práticas internacionais e aproveitando o imenso potencial energético que o País possui. Os recentes acordos com a União Europeia e a China representam marcos importantes nessa trajetória, ao viabilizar a transferência de tecnologias avançadas, atrair investimentos estratégicos e fomentar a troca de conhecimento com nações que já possuem soluções robustas em recuperação energética e descarbonização. A experiência europeia, com destaque para Alemanha e Dinamarca, mostra que políticas públicas bem estruturadas, como tarifas de incentivo e metas claras de integração energética, podem transformar o setor. Já a liderança chinesa em usinas waste-to-energy e na produção de biogás e biometano oferece ao Brasil um modelo concreto de como a inovação tecnológica e os investimentos governamentais podem alavancar o desenvolvimento sustentável.
Ao implementar essas soluções, o Brasil pode não apenas reduzir suas emissões de metano, que atualmente representam um dos maiores desafios ambientais do País, mas também gerar energia limpa em larga escala, promovendo uma economia mais verde e resiliente. A combinação de políticas públicas eficazes, infraestrutura modernizada e parcerias internacionais será essencial para que o País alcance suas metas climáticas e transforme o setor de energia de resíduos em um pilar estratégico de seu desenvolvimento econômico.
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ADVOGADO, PRESIDENTE-EXECUTIVO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RECUPERAÇÃO ENERGÉTICA DE RESÍDUOS (ABREN), VICE-PRESIDENTE LATAM DO WASTE TO ENERGY RESEARCH AND TECHNOLOGY COUNCIL (WTERT), É PROFESSOR CONVIDADO DA FGV SÃO PAULO NO MBA EM ADMINISTRAÇÃO: RECUPERAÇÃO ENERGÉTICA E TRATAMENTO DE RESÍDUOS