Aprovado na comissão processante do impeachment, o relatório do senador Anastasia deverá, na próxima terça-feira, ser apreciado pelo plenário do Senado Federal, ao qual caberá, por maioria simples, receber a acusação.
Por tramoia de Eduardo Cunha, que apenas ajudou Dilma, o processo instaurado limitou-se a fatos ocorridos em 2015, em especial às operações de crédito ilegais, as pedaladas havidas entre o Tesouro Nacional e o Banco do Brasil, bem como à edição de decretos de suplementação de verbas sem autorização legislativa.
Ao contrário do que tonitrua a defesa de Dilma, a prova produzida perante a comissão processante é absolutamente desfavorável à presidente afastada, seja a testemunhal, como a pericial e a documental.
O procurador de Contas, em seu depoimento, por exemplo, disse: “O Ministério Público de Contas e o Tribunal de Contas (da União) consideraram caracterizada uma operação de crédito (...) com base no resultado efetivo dessa operação, que é o governo se tornar devedor de bilhões acumuladamente, como cheque especial, no Banco do Brasil”. Em parecer preliminar sobre as contas de 2015, o TCU vem de se manifestar em voto do ministro José Múcio Monteiro, segundo o qual no ano de 2015 a União incorreu em novas operações de crédito aparentemente irregulares com instituições financeiras controladas, reproduzindo o padrão de 2014. Assim, o Tesouro Nacional deixou de repassar, tempestivamente, ao Banco do Brasil os valores relativos à equalização de taxa de juros nas operações do Plano Safra.
Quanto aos decretos de suplementação de verba em contraste com a meta fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o TCU também se manifestou: “Essa ocorrência configurou, na prática, a abertura de créditos suplementares sem a devida autorização legislativa, vedada pelo art. 167, inciso V, da Constituição Federal”.
Técnico do TCU, ao ser indagado se a presidente sabidamente violou a lei orçamentária ao editar decretos com desrespeito à meta fiscal vigente, respondeu: “Sim, porque ela mesma enviou o Projeto de Lei n.º 5, para alterar a meta. E, na exposição de motivos, ela mesma disse que não teria mais condições de cumprir a meta vigente, portanto, pedia ao Congresso Nacional que alterasse a meta”.
A perícia não vai em outra direção, pois dizem os peritos: “Esta Junta reitera o entendimento de que os atrasos de pagamento, no âmbito do Plano Safra, constituem operação de crédito vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal”. E quanto aos decretos, diz a perícia não serem “compatíveis com a meta de resultado primário constante da LDO/2015”.
O relatório busca explicar as causas das afrontas à Constituição nestas duas formas de conduta, que se conjugam: o financiamento do Tesouro pelos bancos públicos e a suplementação de verbas sem autorização do Congresso.
Diz o senador Anastasia: “De 2004 a 2014, a renúncia de receitas subiu da casa dos R$ 60 bilhões para cerca de R$ 300 bilhões – chegando ao montante de R$ 379,8 bilhões em 2015, considerado recorde. Com a decisão política de tentar estimular o crescimento econômico por meio da desoneração tributária de alguns segmentos da economia, para dar resposta à crise econômica, gerou-se forte perda de receita. Ao mesmo tempo, contudo, o governo não tomou providências efetivas para conter a expansão dos gastos públicos de modo a equilibrar receitas mais baixas com gastos menores. É aqui que os dois fatos principais objeto deste processo – as ‘pedaladas fiscais’ e os decretos presidenciais – se conjugam”.
E continua: “Além de graves, os fatos narrados não são isolados, tampouco pontuais. Os quatro decretos e as operações de crédito com o BB por ocasião do Plano Safra, que foram objeto da instrução preliminar nesta Comissão, são peças em um tabuleiro de ação política muito maior; fazem parte de um conjunto de medidas que buscaram ocultar ou inflar o resultado primário e, assim, expandir o gasto público”.
Tratou-se, portanto, de um modo de ser, de uma política fiscal e financeira adotada pela presidente da República como gestora da alta administração: aumentar o gasto e financiar o Tesouro por via dos bancos públicos. A presidente da República, mesmo sabedora dos riscos decorrentes dessa política, pois deles alertada desde 2013 pelo TCU, efetivou-a, redundando nessas ações ilícitas.
A política do governo no plano fiscal foi decidida pela chefe do Executivo em conjunto com ministros e o secretário do Tesouro, no sentido do que fazer ou deixar de fazer. Responde a presidente, como dirigente da alta administração, pelos atos inseridos na linha da política fiscal adotada como diretriz governamental. Em declaração, técnico do Tesouro registra ter havido ordem superior para não se pagar ao Banco do Brasil. Havia ordem, mas, é óbvio, não escrita como é próprio nesse tipo de determinação decorrente de diretriz política.
Com seu temperamento controlador, a presidente comandava de perto a economia, tendo participação direta ou por meio dos ministros, com quem se reunia, na execução da política fiscal e financeira. Havia, portanto, consciente adesão aos atos e assunção do conjunto das medidas tomadas. Com conhecimento de causa comprometeu as finanças públicas.
Por isso o relatório do senador Anastasia finaliza: “O que se constata, portanto, é que a acusada foi irresponsável não apenas na omissão quanto ao seu dever de coibir essas graves irregularidades, mas também na adoção de providências de sua competência exclusiva e na direção superior da Administração Federal. A Presidente da República era a pessoa em toda a cadeia administrativa que detinha o poder definitivo de mudar a rota da ação lesiva, mas não o fez”.
Conclusão evidente: o seu afastamento é uma medida absolutamente justa.
* MIGUEL REALE JÚNIOR É ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA