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Opinião | Advocacia extrajudicial

Originalmente restrita a determinadas atividades, essa atuação vem sendo ampliada e incentivada pelo sistema legislativo, por contribuir para a desburocratização dos negócios e das relações jurídicas, além do desafogamento do Poder Judiciário

Por Alexandre Clápis e Rafael Passaro

De acordo com a 15.ª edição do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário finalizou o ano de 2021 com 77,3 milhões de processos judiciais em tramitação, que aguardavam uma decisão definitiva. Destes, 30,5 milhões (ou seja, 39,4%) estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, à espera de alguma solução futura. Desconsiderados estes processos, ao fim do ano de 2021 existiam 46,8 milhões de ações judiciais em andamento.

É possível notar pelos números acima, mesmo que referentes ao ano de 2021, a expressiva litigiosidade da sociedade brasileira. Isso adveio, especialmente, da redemocratização do Brasil e da garantia de direitos individuais previstos na atual Constituição federal. Entre esses direitos está o acesso à justiça, considerado fundamental (art. 5.º, XXXV).

Em suma, é garantido a todo cidadão buscar o Poder Judiciário para a solução de seus conflitos. Numa sociedade como a nossa, há diversas relações jurídicas que, em decorrência de circunstâncias específicas, necessitam da interferência de um terceiro imparcial para decidir determinada controvérsia.

Nesse sentido, principalmente em razão do assoberbamento do Poder Judiciário, torna-se imprescindível a avaliação prévia, por advogados especializados, dos termos e das condições que serão objeto de relações jurídicas entre particulares, com o objetivo de (1) torná-los mais claros e objetivos para o caso de serem submetidos à avaliação de um terceiro imparcial, (2) aproximá-los dos entendimentos dos tribunais, para buscar maior segurança e previsibilidade, e (3) criar alternativas de solução de conflitos sem acionamento do Poder Judiciário.

Assim, a atuação na advocacia pode ser dividida em duas grandes frentes: a consultiva e a contenciosa.

Na consultiva procura-se alinhar as manifestações de vontades dos interessados, na maioria das vezes instrumentalizadas por contratos escritos, com a lei e com a jurisprudência, de modo a assegurar a legalidade das disposições, conjugando-as com os entendimentos dos tribunais. Também se busca prever antecipadamente disposições que tratem dos mecanismos alternativos para solução das disputas que possam surgir entre as partes, de modo a evitar a intervenção do Judiciário, sem ferir o direito fundamental de acesso à justiça.

Já na frente contenciosa, a atuação será no sentido de buscar a melhor solução possível para a divergência, seja por mecanismos alternativos de composição, seja junto do Poder Judiciário.

A frente consultiva é bastante ampla. O advogado poderá atuar preventivamente em assuntos de direito público e privado, das mais diferentes complexidades, com vistas a adequar os interesses dos interessados com aquilo que é juridicamente admissível e evitar consequências não desejadas. Exemplos simples, mas ilustrativos: cabe ao advogado, nessa fase, esclarecer a seu cliente que um herdeiro não pode negociar a herança de pessoa viva, porque é expressamente proibido pela legislação em vigor (Código Civil, art. 426). Do mesmo modo, a doação de ascendentes a descendentes ou de um cônjuge para o outro importará adiantamento do que lhes caberá por herança (Código Civil, art. 544), salvo se declarado pelo doador que se destacou da parte disponível. Ainda, a compra e venda será considerada nula se se deixar a fixação do preço ao arbítrio exclusivo de uma das partes (Código Civil, art. 489).

Em qualquer desses cenários, a função do advogado consultivo envolve não só o alerta a seu cliente acerca de eventuais limitações ou consequências legais das transações por ele pretendidas, mas também a identificação de possíveis alternativas para alcançar resultados semelhantes, porém com menores riscos e custos.

Há, também, ainda na frente consultiva, a chamada advocacia extrajudicial, que, em linhas gerais, consiste no assessoramento para a constituição ou desconstituição de negócios jurídicos, muitas vezes agindo com o apoio das atividades desenvolvidas por tabeliães de notas e de registradores imobiliários, de modo a evitar a necessidade de intervenção do Poder Judiciário.

Originalmente restrita a determinadas atividades (como, por exemplo, a elaboração de contratos), essa atuação vem sendo cada vez mais ampliada e incentivada pelo próprio sistema legislativo, por contribuir para a desejadíssima desburocratização dos negócios e das relações jurídicas, além do óbvio desafogamento do Poder Judiciário. Observadas as regras específicas estabelecidas em leis especiais, atualmente podem ser desenvolvidos extrajudicialmente, por exemplo, os seguintes assuntos: 1) contratos em geral; 2) pacto antenupcial; 3) separação e divórcio consensuais; 4) testamentos; 5) inventário e partilha; 6) atas notariais; 7) usucapião; 8) adjudicação compulsória; 9) retificação de registro; e 10) execução de propriedade fiduciária imobiliária.

Essa tendência de incentivo à busca por soluções extrajudiciais atinge também, naturalmente, a esfera contenciosa, na qual os entendimentos mais modernos são no sentido de que o direito de acesso à justiça deve significar a resolução adequada, rápida e eficaz de conflitos, utilizando um sistema de múltiplas portas que inclui métodos extrajudiciais baseados no arbitramento, na peritagem, na avaliação, na negociação, na transação, na mediação, na conciliação e na arbitragem para a solução dos conflitos.

Esses mecanismos alternativos podem ser divididos em dois grupos. No primeiro, onde estão a arbitragem, o arbitramento, a peritagem e a avaliação, há a participação de terceiros imparciais com o objetivo de decidir a controvérsia, apresentando uma solução e excluindo outras possibilidades ou alternativas para o caso. No segundo estão os mecanismos que se apoiam na autocomposição, como a negociação, a conciliação, a transação e a mediação, e para alcançar esse objetivo podem ou não se utilizar da intervenção de terceiros imparciais.

O mercado imobiliário (aqui incluídos os tabeliães de notas e os registradores imobiliários, sobretudo quanto às atividades que lhes são atribuídas conforme exemplificado acima) pode se valer do sistema de múltiplas portas para solucionar impasses e conflitos que surjam no decorrer de determinada relação jurídica. Há diversas relações contratuais imobiliárias que se prolongam no tempo e que podem, durante a sua execução, ser objeto de desentendimentos entre as partes. Por exemplo, na permuta de determinado imóvel por futuras áreas construídas no local, a entrega da obra pode gerar divergências de entendimentos entre os contratantes, o que poderá ser resolvido pelos métodos alternativos de solução de conflitos acima referidos.

Portanto, a advocacia consultiva tem vital importância nas relações jurídicas porque pode, como dito, previamente alertar seus clientes sobre as eventuais limitações e consequências daquilo que pretendem e identificar alternativas para atingir resultados semelhantes com menores riscos e custos. E, na mesma linha, tem expandido sua atuação para a consecução de objetivos das partes e desempenhando papel de importante apoio ao Poder Judiciário, que pode direcionar sua atuação para temas que realmente não possam prescindir da sua intervenção.

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