De tempos em tempos, algum termo emerge com força total, ajudando a consolidar nossas vivências e olhares cotidianos. Afrofuturismo é um desses temas. Segundo a Academia Brasileira de Letras, “em 1994 Mark Dery cunhou o termo afrofuturismo a partir de uma análise da cena cultural-literária dos Estados Unidos com base em entrevistas que o crítico fez com três artistas e intelectuais negros, Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany, em que se questiona a ausência de autores afro-americanos na ficção científica. O termo busca descrever as criações artísticas que, por meio da ficção científica, inventam outros futuros para as populações negras”.
De fato, quando me lembro dos mais renomados e conhecidos escritores de ficção que se destacaram no mundo, nas décadas de 1980 e 1990, não me recordo de nenhuma referência de autores negros. Pode ser um mero reflexo do apagamento que se faz de intelectualidades negras na nossa sociedade, por isso peço a você, que está lendo este artigo, que, caso tenha referências, compartilhe-as comigo. No caso de produtores cinematográficos, ocorrem-me, instantaneamente, George Lucas e Steven Spielberg, ambos homens brancos.
E, quando se trata de formação de elenco destas obras, vemos a total ausência de representatividade. Ainda na década de 1980, tivemos produções que entraram para a História, como ET, o extraterrestre (1982), O enigma de outro mundo (1982), O exterminador do futuro (1984) e De volta para o futuro (1985). Já na década de 1990, tivemos O homem bicentenário (1990), Jurassic Park (1993) e O quinto elemento (1997), e em todos esses filmes o protagonista era branco – eventualmente havia um coadjuvante negro, mas sempre representando um papel secundário e sem muita expressão no roteiro/enredo. Lembro-me de que durante alguns anos, quando assistia a alguma ficção e havia um personagem negro, eu já sabia que em dado momento do filme ele morreria, pois estava lá como figura dispensável.
Claro que tivemos algumas exceções, como Independence Day (1996) ou MIB – homens de preto (1997), ambos com Will Smith, mas foram somente a exceção que comprovava a regra. Autores brancos, diretores brancos, equipes hollywoodianas brancas, protagonistas brancos.
Durante o estudo de Mark Dery, a pergunta central que persistia era: “Pode uma comunidade cuja história foi deliberadamente apagada imaginar um futuro possível? E qual seria o caráter desse futuro?”. Olhando para trás, cerca de 30 anos após as perguntas postuladas por Mark, eu diria que, se a resposta dependesse da indústria tradicional, do status quo estadunidense ou brasileiro, teríamos avançado, porém muito pouco.
A grande disrupção nesta conversa me parece vir do streaming. Black Mirror, um grande sucesso atual de ficção científica, mostra, já no episódio 2, intitulado 15 Milhões de Méritos, um protagonista negro, o ator Daniel Kaluuya, interpretando Bing, que vive programado por telas onipresentes lhe indicando os passos a seguir a cada dia, e ele precisa pedalar para juntar créditos que o permitam mudar de vida. Este é só um exemplo das dezenas de episódios com protagonistas negros da série e, aliás, das mais variadas etnias. Neste mesmo streaming, tivemos a série da Marvel com o super-herói Raio Negro, entre outros. Em outra plataforma temos, agora, GEN V, uma série de heróis que é uma derivação de The Boys e traz dois protagonistas negros. Além destes, temos também, em outras plataformas de streaming, as séries Invasão Secreta, Mila no Multiverso, A Outra Garota Negra etc. Os exemplos são muitos, estão simultaneamente no ar e são de alto impacto em termos de representatividade.
Acredito que parte desse resultado tem que ver com a variedade proporcionada pelos streamings. Outra parte tem que ver com a necessidade deste novo modelo de negócio de ser essencialmente mais disruptivo e de antever tendências, dando espaço a novos rostos e narrativas, e, por fim, a necessidade de dialogar, entrar e se consolidar em novos mercados. O que antes era impossível por causa de um lugar hegemônico daqueles que já estavam na indústria, hoje somente é possível por meio da diversidade e da inclusão. Ou seja, trazendo aqueles que antes eram apagados e invisibilizados para o centro das narrativas.
Respondendo à pergunta de Mark Dery: sim, acredito que é possível uma comunidade que foi deliberadamente apagada imaginar um futuro possível. A população negra e tantos outros povos fizeram isso de forma linda e impactante por anos. Porém, é evidente que sonhar um futuro possível é algo muito mais bonito, acolhedor e potente quando nossas histórias e pontos de vista são contemplados. Quando escrevemos as histórias, as dirigimos e protagonizamos.
Num gênero que mexe tanto com o nosso imaginário e nossa visão de futuro, como a ficção científica, este ponto de virada chega em boa hora. Certamente, a mudança rumo a uma sociedade racialmente mais inclusiva, com este impulso, será exponencial.
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MESTRE EM POLÍTICAS PÚBLICAS, É CEO E FUNDADORA DA GESTÃO KAIRÓS, CONSULTORIA DE SUSTENTABILIDADE E DIVERSIDADE