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Opinião|Arrogância, corrupção, política

Por Roberto Romano

Quando se refere aos políticos, Santo Agostinho dirige um louvor a Deus: “Sois o único que sabes comandar sem orgulho (sine thypho) porque sois o verdadeiro Senhor e porque não tendes um Senhor”. As pessoas desempenham papéis no Estado, como governantes ou lideradas. Elas sofrem a tentação de lisonjas ou demagogias. Segundo Agostinho, quando os políticos agem, o diabo aplaude: “Ótimo, ótimo”. E assim os torna “semelhantes a ele, para fazer de nós, nas trevas e no frio, escravos do perverso e tortuoso imitador da potência divina”. O padre usa o termo grego thypho, cujo significado é “inchaço”, para designar a soberba. O mesmo vocábulo se aplicava em seu tempo à febre da qual surge a estupidez momentânea em que se encontra o doente. A palavra também designa a cegueira trazida pela fumaça, o que metaforicamente desvela o indivíduo desprovido de visão por causa de sua arrogância.

Agostinho diz que o diabo imita tortuosamente o divino e nos incentiva a fazer o mesmo. A busca de roubar as luminosas bases celestiais do poder reforça as trevas do mundo. A ordem celeste se degrada em perversões. No universo cristão calaram fundo as fórmulas agostinianas. Em qualquer política mundana “tudo se inverte, os efeitos precedem as causas, nada do que se espera ocorre. (…) Um sujeito recebe o golpe que planejava dar, outro morre quando se imaginava seguro, outro sofre o que não sonhava; tudo se transforma em noite, no obscuro entre as brumas e trevas” (G. Naudé). O satanismo do poder inclui missas negras pavorosas, sob cruzes de cabeça para baixo. Agostinho aponta os hipócritas inchados de orgulho que fazem pose de combater a corrupção escondendo seus próprios usos corruptos. Eles fingem condenar a soberba, mas agem de modo soberbo. Temos, então, os “excelentes imitadores de Satã” (Confissões, Livro 10, capítulos 36, 37, e 38). Eles quiseram corromper o Eterno e agora corrompem toda a terra.

Outro doutor da Igreja, ao discutir a tara política, afirma que nela o crime reside no alvo de roubar o poder divino, “o desejo de ser a regra dos outros (…), querer os primeiros lugares e não submeter-se de algum modo, é o pecado do orgulho. Assim, diz-se com justeza que o primeiro erro do demônio foi o orgulho. Um erro no princípio é fonte de erros variados e múltiplos na vontade; ódio em relação a Deus que resiste ao orgulho e pune com justiça a falta, inveja em relação ao homem” (Summa contra os gentios). Em profundo comentário ao Livro de Jó, Aquino discute o arrogante Leviatã (emblema de Hobbes para o poder absoluto) e proclama: “O intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. (…) O diabo não apenas em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em soberba e mostra-se como a fonte do orgulho (…). O que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para o tentar, levando-o ao orgulho e ao seu reino”.

Mesmo autores que ajudaram a dividir o Estado e suas bases religiosas, como Francis Bacon, usam o simile angélico para expor mazelas políticas: “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso causou a queda do homem” (Of goodness & Goodness of Nature). Hobbes, para defender a temporária atenuação da guerra de todos contra todos, põe o orgulho como algo a ser impedido na República. Segundo Norberto Bobbio, o poder absoluto, no sentido hobbesiano, só consegue alguma paz na alcateia humana se impede ações orgulhosas. Maquiavel, inclusive, que buscou abafar as virtudes cristãs da humildade em proveito de uma ética pagã, evidencia os males trazidos pelo orgulho dos príncipes imprudentes.

Caro leitor, o dito até agora neste artigo nada tem de sermão religioso, pois integra a prudente reflexão política. Quando um partido ou governo se proclama puro, mas fica muito tempo nos palácios, lisonja e orgulho reforçam a sua arrogância, fazem-nos esquecer o quanto é frágil e transitório o mando, e como ele perverte os hábitos. O poder segue múltiplas trilhas. Os gabinetes onde se mimetiza a força divina cedo ou tarde perdem correligionários. Chega o instante em que o diabólico imitador da onipotência está só e deve assumir as culpas de tudo. Tal é a prática do bode expiatório. Dilma Rousseff, hoje criticada no Partido dos Trabalhadores (PT) e pelos que lhe beijavam as faces, ou mesmo os pés, cai no abismo da solidão. A tragédia do orgulho é reiterativa. Por tal motivo Agostinho não aceita santidade na política: “Afastada a justiça, que seriam os reinos senão grandes quadrilhas? E as quadrilhas que outra coisa constituem, senão pequenos reinos?” (Cidade de Deus, IV, iv). Tais frases alertam os Parlamentos, partidos e coletivos políticos arrogantes que usam a máscara da pureza.

Permitam uma lembrança pessoal. No jovem governo Lula fui convidado para seminário no Itamaraty. Conduzido por um funcionário da casa, ele me apresentou aos presentes. Ao chegar a uma roda de professores – conhecidos por mim, e que pertenciam ao PT –, o cicerone me nomeia: “Este é o professor da Unicamp”. O grupo vira as costas. Um deles rosna: “Sabemos”. Os sócios presuntivos do presidente se imaginaram acima dos bons modos. Na palestra, defendi a tese “ultrapassada” de que a democracia exige respeito à alteridade. Citei um autor da esquerda: “Duas coisas a burguesia nos legou, e delas não podemos abrir mão: bom gosto e boas maneiras”(Lenine). Designei os colegas arrogantes dizendo-lhes que sua atitude não trazia bons augúrios para o Brasil e para seu partido. Depois, recebi durante anos torrentes de insultos dos militantes, autômatos que espalham calúnias contra os “inimigos”, à direita ou à esquerda. Na antiga entronização do papa um frade queimava estopas dizendo: Sancte Pater, sicut transit gloria mundi. No caso do petismo e de seus intelectuais, muita estopa será queimada para que eles entendam a tragédia política. Se a grosseria do seu comportamento fosse menor, muitos desgostos seriam poupados à sua grei e aos líderes que a comandam, a começar com a presidente afastada.

*Roberto Romano é professor da Unicamp e é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'

Opinião por Roberto Romano