A situação atual é insustentável. O remédio em defesa da democracia está se tornando um veneno para a credibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF), para a governabilidade do Executivo, para a funcionalidade do Legislativo e para a própria sociedade. Não há dúvida de que empresas operando no Brasil precisam ter representante em território nacional e de que decisões judiciais devem ser respeitadas. Também não há dúvida de que o STF vem desempenhando, nos últimos anos, papel fundamental na defesa das instituições democráticas.
O que aqui se fala diz respeito não ao passado, mas ao presente e, especialmente, ao futuro. A situação atual é insustentável para o setor público e para o setor privado – e isso não é uma crítica ao ministro Alexandre de Moraes, como se ele fosse o problema. O problema não é o ministro Alexandre de Moraes. Há uma questão de dinâmica institucional: a excepcionalidade emergencial não pode se converter em situação permanente.
Como o País retornar à normalidade – como o STF voltar ao seu funcionamento ordinário – sem que esse retorno signifique fraqueza ou retrocesso democrático? Sem que isso seja munição a seus críticos? Os ânimos andam exasperados. Há quem leia uma decisão judicial e, por discordar dela, clame: impeachment do juiz! Nesse cenário conturbado, como voltar à normalidade institucional? Nossa sugestão tem dois vetores.
O primeiro é o reconhecimento sereno da excepcionalidade do cenário vivido nos últimos anos. Nossas instituições democráticas sofreram ataques inéditos, pela quantidade, pela gravidade e pela omissão de muitos. Não é normal o que o Brasil viveu entre 2019 e 2022. Não é normal o que o Brasil viveu no 8 de janeiro de 2023. E, nessa excepcionalidade de circunstâncias, a atuação excepcional do STF foi necessária. Foi heroica.
Mas, porque essa atuação foi excepcional, ela não pode se converter em permanente. O reconhecimento de que o Supremo teve motivo para atuar do modo como atuou é, portanto, fundamento para que o Supremo não perpetue essa atuação emergencial.
Ainda que persistam ameaças – numa democracia, as ameaças são constantes –, o cenário atual é diverso do que aquele vivido nos últimos anos. Por absurdo, se o STF considerasse que as circunstâncias continuam as mesmas de antes, ele estaria negando a eficácia de sua própria atuação e da atuação de outras instituições democráticas, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Diretamente relacionado ao primeiro, o segundo vetor refere-se à reafirmação da racionalidade jurídica. O Direito nunca é mera resposta automática. O trabalho do Judiciário demanda saber técnico e reflexão humana. A norma jurídica – também a constitucional – não é mero texto. É o texto interpretado sistemicamente e aplicado a uma realidade social concreta.
O retorno à normalidade não é, portanto, rejeitar o que foi feito. Mas é compreender a natureza do próprio trabalho judicial, que se apoia na interpretação da lei e na avaliação dos fatos. É reconhecer, assim, as limitações de seu próprio trabalho. Não existe tribunal perfeito. Mas aquele que mais se aproxima da perfeição é, sem dúvida, o que reconhece seus erros, o que sabe, quando necessário, olhar com novos olhos para a mesma situação. O que a tantos escandaliza na atuação do STF em relação à Operação Lava Jato é, a rigor, um de seus grandes méritos. A Corte soube reavaliar suas próprias decisões.
O caminho da racionalidade jurídica não é fácil. Sua lógica não é política. Não poucas vezes, o Judiciário vai desagradar ambos os lados políticos. Mas nessa aparente fraqueza estão sua força, sua autoridade, sua identidade institucional.
Para a racionalidade jurídica, que também pode ser chamada, com todo o rigor, de racionalidade democrática, três temas mostram-se essenciais: respeito ao juiz natural, respeito ao processo e respeito à garantia do duplo grau de jurisdição. Em certo sentido, o último tema é o mais importante, pois assegura todos os outros. Aqui, fica evidente que o problema não é o ministro Alexandre de Moraes.
Uma das grandes deficiências da Lava Jato foi o automatismo das instâncias superiores ao analisar as decisões do juiz Sergio Moro. Elas corroboraram, como se imaculada fosse, a atuação do magistrado. Não havia perfeição nenhuma, o que havia era enorme pressão da opinião pública, o que havia era profundo viés cognitivo, o que havia era gravíssimo estreitamento de perspectivas. Até hoje o Supremo sente na própria pele o custo político da sua coragem ao revisar erros da Lava Jato.
As situações excepcionais geram todos estes fatores: pressão da opinião pública, viés cognitivo, estreitamento de perspectivas. Afinal, tudo está orientado a enfrentar o perigo imediato. Mas o Judiciário – muito especialmente, a Corte constitucional – não pode ser mera resposta binária. Sua missão institucional demanda articulação, compreensão, diálogo, divergência. Numa palavra, a democracia brasileira precisa que o STF continue interpretando o Direito, sem congelamentos irrefletidos, no caminho da racionalidade jurídica.
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