O repentino fim do impasse entre as forças rebeldes e o regime na guerra civil síria terá consequências devastadoras para todo o Oriente Médio. “Assad ou queimaremos o país” era uma frase de efeito frequentemente pichada nas paredes das cidades sírias como forma de aterrorizar psicologicamente todo e qualquer tipo de oposição. O nome Assad era o símbolo de um regime que assassinava crianças de colo, mulheres, idosos, grávidas e qualquer pessoa tida como opositora ao jugo implacável de uma polícia política que praticava verdadeiro terror de Estado.
Muitas análises sobre o ressurgimento da “guerra quente” na Síria perdem de vista o significado do que o regime Assad representa. As atrocidades cometidas pela dinastia Assad são de causar inveja a qualquer jihadista. Trata-se de um regime que nunca fez concessões políticas à oposição democrática, tendo especial predileção por massacrar, torturar barbaramente e fazer desaparecer dezenas de milhares de pessoas que pediam por reformas graduais no corroído sistema político do país. Um dos primeiros atos de Bashar al-Assad durante a guerra civil foi libertar milhares de jihadistas de suas prisões justamente para que houvesse infiltração jihadista armada na rebelião democrática da Primavera Árabe na Síria. Alguns desses mesmos jihadistas haviam sido treinados pela própria polícia política do regime, o Mukhabarat, e enviados para o Iraque nos anos 2000 para combater a invasão dos Estados Unidos com atentados suicidas e outras formas de guerra assimétrica.
Seu pai, Hafez al-Assad, ordenou o massacre contra a comunidade sunita de Hama em 1982. O pretexto era combater uma insurgência islamista da Irmandade Muçulmana, que possuía algumas centenas de combatentes. Segundo uma estimativa conservadora, foram assassinadas cerca de 20 mil pessoas e outras 15 mil desapareceram, não se sabe se mortas ou enviadas para as piores prisões do oeste da Síria. As famílias nem sequer sabiam se os seus entes queridos haviam sido sepultados em valas comuns ou esquecidos em terríveis prisões em lugares isolados. Até a década de 1990, muitas famílias ainda pagavam propinas para oficiais do regime em troca de míseras informações que comprovassem algum tipo de indícios de prova de vida sobre seus pais, avós, maridos, pais e filhos.
Ocorre que o massacre de Hama é apenas um de inúmeros eventos terríveis de um clã que domina a Síria há mais de 50 anos. O Partido Baath jamais alterou sua visão de mundo sectária guiada pelo controle absoluto da etnia alauíta, um povo situado nas montanhas costeiras da Síria e que povoa as forças de segurança, a polícia e os serviços de inteligência. Como se não fosse suficiente, existem milícias paraestatais alauítas que são responsáveis por coagir, extorquir e defender o regime a qualquer custo, inclusive com estupros coletivos em regiões sunitas. Trata-se de uma forma de aterrorizar essas comunidades através da desonra das mulheres. Hafez e Bashar governam a população síria através de um lema muito simples: para eles, o povo apenas se mantém submisso e devidamente adestrado com a sola de uma bota no seu pescoço.
Curiosamente, apenas damos atenção à sua nêmesis, o famigerado Estado Islâmico, que, assim como o regime de Assad, também segue uma linha de atuação marcada pela violência extrema, pelo extermínio de outras etnias consideradas traidoras e por uma ambição irrestrita pela conquista territorial. A verdade é que o Partido Baath e o Estado Islâmico compartilham muito mais do que inicialmente suspeitávamos.
Tradicionalmente, a cobertura jornalística do Ocidente ficou muito focada na famosa “linha vermelha” traçada por Barack Obama em 2012, ao ameaçar Assad de retaliação norte-americana caso ele usasse armas químicas contra a população civil. Diante do recuo dos Estados Unidos de se envolver no conflito, num período de ressaca com a invasão do Iraque, a Síria acabou sendo loteada pelos interesses de potências internacionais e regionais, como a Rússia, o Irã, a Turquia, o Catar e a Arábia Saudita. Até então, os vencedores indiscutíveis do conflito haviam sido a Rússia e o Irã, que colheram dividendos enormes ao bancar Assad e conseguiram impor sua agenda na região.
As atuais forças rebeldes são compostas por um misto de forças curdas no nordeste do país, dos drusos ao sul de Damasco, e de uma miscelânea de rebeldes de diferentes orientações religiosas e ideológicas, que agora voltaram a aderir ao processo revolucionário. A repentina queda do regime foi liderada pelo grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), ligado originalmente à Al-Qaeda, que possui como líder um jihadista, Abu Mohammad al-Julani, que tem tentado adaptar o discurso extremista para o público externo. Com a queda da casa dos Assad, é provável que se desenrole mais um terrível acerto de contas, traçado sob linhas étnicas, entre alauítas, xiitas, drusos, curdos, cristãos e sunitas. E, infelizmente, o futuro não parece sorrir para os sírios que, no longínquo ano de 2011, apenas sonhavam viver em paz em um regime estável e democrático.
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PROFESSOR DA ESCOLA DE HUMANIDADES DA PUCRS, COM FOCO NAS ÁREAS DE HISTÓRIA, FILOSOFIA, DIREITO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS, É AUTOR DO LIVRO ‘REVOLUÇÃO CONSERVADORA: GENEALOGIA DO CONSTITUCIONALISMO AUTORITÁRIO BRASILEIRO (1930-1945)’