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Opinião|Assédio para iniciação ao tabagismo começa na infância

Aliar sabores e aromas a uma droga psicoativa é uma forma perversa de fisgar novos clientes

Por Mônica Andreis e João Paulo Becker Lotufo

Todos os anos, no dia 31 de maio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) celebra o Dia Mundial sem Tabaco. Em 2024, o tema escolhido foi Proteção das crianças contra a interferência da indústria do tabaco. Isso porque crianças e adolescentes diariamente são atraídos para o consumo de produtos fumígenos, a ponto de se considerar o tabagismo uma doença pediátrica.

No Brasil, a publicidade, promoção ou patrocínio de produtos de tabaco foi proibida em 2000, restrição fortalecida após a implementação de outras medidas previstas na Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, da OMS. Foi uma medida que ajudou na redução da atratividade e apelo ao consumo que existiam quando propagandas de cigarros inundavam as telas, mas com o tempo novas táticas e produtos foram surgindo para driblar as restrições e tentar reconquistar o valioso mercado de nicotina.

Não por acaso, cigarros saborizados e aromáticos despertaram a atenção de jovens, com sabores mentolados, de baunilha, uva, morango, tutti-frutti, tal como as balas e chicletes que atraem o público infanto-juvenil. Produtos fumígenos não deveriam ter sabores atrativos e muito menos que favoreçam a iniciação ao tabagismo. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tentou proibir essa prática em 2012, mas a indústria do fumo entrou com uma ação judicial e até hoje a norma não foi implementada.

Sabores e aromas também atraem jovens para o consumo dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) – também chamados de pods, vapes –, aliados ao apelo tecnológico, design moderno e cores variadas. A combinação de sabores possíveis parece infinita, existem hoje mais de 8 mil tipos, e o que dizer de um cigarro eletrônico sabor algodão doce? Qual o público-alvo desse produto?

Aliar sabores e aromas a uma droga psicoativa, que hoje vem sendo administrada de forma a provocar uma dependência ainda mais rápida e potente por meio dos sais de nicotina, é uma forma perversa de fisgar novos clientes. Não à toa, o consumo de cigarros eletrônicos por jovens preocupa autoridades de diversos países, mesmo naqueles onde a comercialização é permitida. Temem não apenas pela criação de uma nova geração de dependentes de nicotina como também pelos impactos na saúde e no meio ambiente.

No Brasil, a venda e publicidade de DEFs é proibida desde 2009, e foi baseada no princípio da precaução, pela inexistência de dados científicos que comprovem a eficiência, a eficácia e a segurança no uso e manuseio de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar. Essa normativa passou por cinco anos de extenso processo de revisão, com produção de relatórios técnicos e consultas públicas, e foi finalmente atualizada por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 855/2024.

A decisão unânime da diretoria da Anvisa foi no sentido de manter a proibição de publicidade e comercialização, com expansão de campanhas informativas e fiscalização para combate ao mercado ilegal. A norma brasileira veda a comercialização do produto, mas não o seu uso, ainda que se recomende fortemente a não utilização. Nas palavras do diretor-presidente: “Criar regras para a comercialização legal desses produtos ainda se mostra imaturo frente a um cenário de ausência de evidências científicas favoráveis”.

A decisão está de acordo com alerta da OMS, que em dezembro de 2023 publicou um chamado à ação aos países onde afirma que a comercialização de cigarros eletrônicos não teve benefícios para a saúde pública e evidências alarmantes sobre efeitos adversos para a saúde da população estão aumentando. Está de acordo também com o posicionamento das principais sociedades médicas brasileiras, entre elas a Sociedade Brasileira de Pediatria, que destacou em nota a escassez de estudos que comprovem a segurança de uso dos DEFs e o risco associado à mistura de concentrações variáveis de nicotina com demais compostos para a saúde dos jovens.

Há evidência conclusiva de que o uso de cigarros eletrônicos causa uma lesão pulmonar diretamente associada ao seu consumo, chamada Evali, e a Sociedade Brasileira de Cardiologia revelou que pesquisas indicam uma relação direta entre o uso de cigarros eletrônicos e o incremento no risco cardiovascular: probabilidade 1,79 vez maior de sofrer um infarto em comparação com não fumantes.

Jovens têm sido os maiores usuários de DEFs, e muitos têm graves e precoces consequências prejudiciais à saúde. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2019 mostrou que 2,8% dos estudantes de 13 a 17 anos usaram cigarros eletrônicos nos 30 dias que antecederam as entrevistas. Já a Pesquisa Nacional de Saúde mostrou que 70% dos consumidores desses dispositivos têm entre 15 e 24 anos. E a Pesquisa Vigitel de 2023 mostrou que 60% dos jovens que usam DEF nunca havia fumado cigarros convencionais. Ou seja, os maiores usuários de DEF são jovens que nunca haviam fumado anteriormente.

Com olhos e dedos nas telas, crianças e adolescentes se tornam alvos na internet. Cerca de 95% entre 9 e 17 anos acessaram a internet em 2022, segundo pesquisa TIC Kids Online Brasil, ficando expostas precocemente à publicidade e comercialização de inúmeros produtos nas redes sociais. E o que aconteceu? Empresas notaram o potencial de promoção e exploração comercial junto ao público jovem, e não foi diferente no ramo de comércio de nicotina.

Embora a maioria das plataformas de redes sociais restrinja a publicidade de produtos do tabaco, muitas não proíbem claramente conteúdos patrocinados. Várias vezes, os anúncios estão camuflados e sua identificação como tal fica dificultada. Investigação liderada pela Campaign for Tobacco-Free Kids (CTFK) revelou como as gigantes do tabaco Philip Morris International (PMI), British American Tobacco (BAT), Japan Tobacco International (JTI) e Imperial Brands usaram influenciadores digitais para atrair milhões de visualizações em campanhas que promovem seus produtos. A empresa Juul foi condenada a pagar mais de US$ 1,1 bilhão nos Estados Unidos por ter adotado estratégias de marketing de cigarro eletrônico voltadas para crianças e adolescentes.

Argumentos de que seria necessário permitir a venda para acabar com o mercado ilegal ou garantir uma suposta qualidade do produto têm sido disseminados por quem tem interesse comercial na venda de DEFs, mas não resistem a uma breve análise. Liberar a venda não acaba com o mercado ilegal, caso contrário não teríamos cigarros contrabandeados. E “qualidade” não é um conceito aplicável a produtos fumígenos derivados ou não do tabaco, todos são tóxicos e nocivos à saúde, vendidos legal ou ilegalmente.

As evidências científicas atuais não justificam colocar em risco a bem-sucedida política de controle do tabaco no País, que conta inclusive com tratamento disponível pelo Sistema Único de Saúde. Eventuais recursos advindos de uma liberação de comércio de DEFs não se aproxima nem de longe dos custos de suas consequências para o sistema de saúde brasileiro. A meta de reduzir ainda mais o tabagismo é possível de ser atingida se prosseguirmos no intuito de informar ainda mais a população, combater o mercado ilícito, fazer cumprir as normas já implementadas e avançar naquelas em que o Brasil ainda não adotou ou estagnou, como por exemplo na política de preço mínimo e impostos de tabaco, sem reajustes desde 2016.

O Brasil avançou no controle do tabagismo, passando de 35% de fumantes em 1989 para 9,3% em 2023, e pode avançar ainda mais se seguirmos privilegiando a saúde pública, e não interesses comerciais corporativos. Acerta a OMS na escolha do tema para o Dia Mundial sem Tabaco deste ano. Prevenção é chave para um futuro mais saudável e sustentável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, DIRETORA-GERAL DA ACT PROMOÇÃO DA SAÚDE; E REPRESENTANTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA PARA ASSUNTOS SOBRE ÁLCOOL, TABACO E DROGAS, COORDENADOR DO PROJETO DE PREVENÇÃO DE DROGAS DR. BARTÔ

Opinião por Mônica Andreis

Diretora-geral da ACT Promoção da Saúde

João Paulo Becker Lotufo

Representante da Sociedade Brasileira de Pediatria para assuntos sobre álcool, tabaco e drogas, é coordenador do projeto de prevenção de drogas Dr. Bartô