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Opinião|Bênção e matrimônio na nova orientação da Igreja

Do seio do próprio catolicismo podem surgir os mais contundentes e perigosos questionamentos ao papa Francisco

Por Lilian Sales, Renata Nagamine e Camila Nicácio

A reorientação da Igreja Católica para a bênção de pessoas em “situação irregular” e casais do mesmo sexo correu o mundo, causando espécie e furor a uma semana do Natal. Em que consiste essa reorientação papal, publicada na declaração Fiducia Supplicans? É uma ruptura? Ou é uma mudança ao modo católico, com o manejo de formas pela Igreja para reorientar suas práticas sem romper com a tradição?

O documento dá a casais homossexuais acesso a um modo de consagração da sua união, mas os mantém a uma distância segura do matrimônio. Com a Fiducia Supplicans, a Igreja promove a mudança no cuidado pastoral, controlando o risco que essa mudança pode pôr ao seu catecismo.

A distinção entre bênção e matrimônio serve a esse fim.

A nova orientação das práticas pastorais da Igreja dá a sacerdotes a possibilidade de abençoar casais de pessoas do mesmo sexo. Porém a bênção, reiteram o documento e a notícia dele publicada pelo Vaticano, não se confunde nem deve se confundir com matrimônio.

O matrimônio é um sacramento. É regulado pelo direito canônico e só pode ser recebido por pessoas que cumprem as rígidas regras do catecismo da Igreja. Como sacramento, inscreve o laço conjugal num tempo que a Igreja apresenta como não humano, retirado do tempo histórico. Por isso o matrimônio sobrevive para ela ao divórcio, que desfaz o casamento civil.

Há conflito entre a doutrina da Igreja e a reorientação prática dos seus sacerdotes pelo papa? A rigidez da doutrina católica não se choca com o documento assinado por Francisco. A bênção é restrita e não significa aprovação das uniões homossexuais pela Igreja. Para ela, a validação de qualquer união é um efeito da concessão do sacramento.

A julgar pelo documento, a Igreja sabe, no entanto, que na prática a bênção pode se confundir com o matrimônio. Tentando afastar essa possibilidade de confusão, a Fiducia Supplicans proíbe a concessão da bênção durante qualquer outro ritual católico. Também proíbe sua concessão durante ato civil, tais como a celebração do casamento civil ou união estável. A ver se a linha demarcada pela Igreja será respeitada na prática, isto é, nos usos sociais da bênção.

Apesar de a doutrina permanecer intacta, a autorização é uma inquestionável novidade. Em 2021, a Congregação para a Doutrina da Fé excluiu expressamente em documento a possibilidade da bênção a casais de pessoas do mesmo sexo.

A autorização da prática tem relação com a plasticidade que a ideia de acolhimento pastoral, há muito abraçada pelo papa, confere ao catolicismo. Nos termos dos católicos que se identificam com Francisco, é “abrir as portas da Igreja para todos”. Nos termos de Francisco, é a Igreja da acolhida, em lugar de uma Igreja de “juízes que apenas proíbem”.

Por isso a Fiducia Supplicans pode ser vista sobretudo como um documento papal sobre cuidado pastoral. Exprime a importância atribuída às práticas pastorais pelo papado de Francisco em relação à doutrina, mas também o modo de agir da Igreja.

Também, a extensão da bênção a casais homossexuais é condizente com outras posições do papa em relação a pessoas LGBT. Entre essas estão, por exemplo, a condenação da criminalização da homossexualidade e o incentivo do apoio de pais a filhos não heterossexuais. O incentivo a esse tipo de apoio não desfigura a homossexualidade como pecado para o catecismo da Igreja, do mesmo modo que a bênção não transforma a união homossexual em matrimônio.

Em ambos os casos, a distinção entre as instâncias do cuidado pastoral e da doutrina abre espaço para uma mudança sem ruptura na medida em que guarda a distância entre as práticas e a palavra. De um lado, essa distância assegura que mudanças nas práticas não moldem por si sós a doutrina; de outro, possibilita que a Igreja se molde ao mundo.

E o mundo em que a Igreja atua é crescentemente menos católico. No Brasil, a hegemonia católica se dissolveu nas últimas décadas, ao passo que o número de praticantes e espaços de culto evangélicos cresceu. O reposicionamento pastoral da Igreja em relação à conjugalidade LGBT dá ao catolicismo a oportunidade de aparecer como uma religião de atos, não só da palavra, uma religião que acolhe, e não que expulsa.

Do ponto de vista de não católicos, ou mesmo de católicos que não participam dos rituais com frequência, a percepção pode ser ainda mais borrada. Essas pessoas não distinguem rigidamente bênção de sacramento, de modo que praticantes de outras religiões, não religiosos e católicos pouco conhecedores da doutrina podem confundir aquilo que a Igreja Católica se esmerou em separar.

O próprio terreno católico em que o papa conduz a Igreja mudou no passado recente, com a associação do velho conservadorismo a movimentos carismáticos. Essa associação reforçou o tradicionalismo dentro da Igreja e o combate contra a Teologia da Libertação, que é importante e formativa na América Latina. Do seio do próprio catolicismo podem surgir, enfim, os mais contundentes e perigosos questionamentos a Francisco.

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PESQUISADORAS NO PROJETO TEMÁTICO PLURALISMO RELIGIOSO E DIVERSIDADES NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE (CEBRAP/FAPESP), COLABORAM COM O OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO E INTERSECCIONALIDADES

Opinião por Lilian Sales, Renata Nagamine e Camila Nicácio