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Opinião | Biografias

Diante da guerra contra a covid-19 não dispomos de uma liderança como De Gaulle ou Churchill

Por Almir Pazzianotto Pinto

“História, êmula do tempo, depósito de ações, testemunha do passado, aviso do presente, advertência do porvir” Miguel de Cervantes

Submetido ao rigor do isolamento social, passo horas na leitura de livros de História. Nestes dias tenho me ocupado com duas biografias, a de Charles de Gaulle, escrita por Julian Jackson (Ed. Zahar), e a de Winston Churchill, redigida por Andrew Roberts (Companhia das Letras).

Sou leitor assíduo de biografias e de autobiografias. Na modesta biblioteca mantenho livros sobre a vida de dom Pedro I, dom Pedro II, José Bonifácio, regente Feijó, Buenaventura Durruti, Emiliano Zapata, Lawrence da Arábia, Bolívar, Rondon, Osório, Getúlio Vargas, Savonarola, Robespierre, Joseph Fouché, Napoleão Bonaparte, Martinho Lutero, Joaquim Nabuco, Nabuco de Araújo, Mauá, sir Richard Francis Burton, santo Agostinho, Stalin, Hitler, Trotsky, Júlio de Castilho. E de Moisés e Jesus Cristo, lidas na Bíblia Sagrada. Biografias irrelevantes, passo os olhos e descarto em sebos.

Charles André Joseph Maria de Gaulle, fundador da 5.ª República da França, nasceu em 1890 e morreu em 1970. Suas últimas horas foram relatados por André Malraux no livro Quando os Robles se Abatem. Um pouco mais idoso, Winston Leonard Spencer Churchill nasceu em 1874 e faleceu em 1965. Ambos participaram da 1.ª Guerra Mundial (1914-1918) e atuaram de forma decisiva para a derrota dos nazistas na 2.ª (1939-1945).

Foram oradores, escritores, estrategistas, estadistas. Pertenceram a seleto grupo de homens que fizeram a História. Como líderes militares e políticos, em anos de incertezas e de guerra sofreram duro combate de adversários derrotistas, que, em nome da paz a qualquer custo, defendiam desonroso acordo com Hitler. O Exército francês, tido como o maior da Europa, foi desmoralizado e batido em duas semanas. Com Paris ocupada, sob o Arco do Triunfo desfilaram as tropas alemãs. A Inglaterra combateu sozinha entre 1939 e 1941, com discreto auxílio dos Estados Unidos, até que o ataque a Pearl Harbor, em 7/12/1941, pela aviação de guerra japonesa, obrigou o presidente Franklin Roosevelt a abandonar a neutralidade e declarar guerra ao Japão, à Alemanha e à Itália, integrantes do Eixo nazi-fascista.

Terminada a guerra, a França retornou à vida política marcada pela turbulência, como estava habituada e considerava normal. A crise que, na visão de De Gaulle, “começara em 1789, estendendo-se até o início da guerra, com vários sistemas temporários, mas sem solução permanente”, agitava o país e o incapacitava a encontrar fórmula para a reconstrução nacional dentro de indispensável normalidade. A Inglaterra, já sem a presença de Churchill, afastado pela vitória do Partido Trabalhista sobre o Partido Conservador, manteve-se fiel à Constituição não escrita, ao parlamentarismo e ao regime monárquico, com a jovem rainha Elizabeth sucedendo ao pai, o rei Jorge VI, falecido em 1952.

A crise no Brasil remonta a 1930, quando a Aliança Liberal, vitoriosa na Revolução de 1930, rasgou a Constituição de 1891 e entregou a chefia do governo provisório a Getúlio Vargas. Antes de assumir o poder, Vargas avisou a Oswaldo Aranha que o seu governo não seria passageiro. Permaneceu 15 anos. Em 29/10/1945 foi derrubado por militares comandados pelo general Eurico Dutra, o condestável do Estado Novo, eleito presidente da República em dezembro de 1945. Como revoluções não se fazem pela metade, Vargas retornou ao poder, em eleições diretas, em 1.º de janeiro de 1951.

Desde a ruptura institucional em 1930, o Brasil alterna breves períodos de tranquilidade com longos anos de conturbação. O regime militar durou duas décadas, mas não recolocou o País nos trilhos da normalidade. Quando se esperava que a redemocratização, iniciada em 1985 e encerrada com a promulgação da Constituição de 1988, desse ensejo a duradouros anos de concórdia e de desenvolvimento, concluímos que somos semelhantes à França no que tem de pior: o país é ingovernável, como admitiu De Gaulle na biografia.

No curto espaço de uma vida tivemos seis Constituições, oito moedas, hiperinflação, seis golpes de Estado, três presidentes depostos, um levado ao suicídio, outro condenado na Justiça Criminal, os escândalos do mensalão, do dinheiro na cueca e da Lava Jato. A instabilidade se aprofundou com a Emenda n.º 4, de 2/9/1961, aprovada para permitir a posse de João Goulart, revogada pela Emenda n.º 6, de 23/1/1963, que nos levou ao golpe de 31/3/1964 e ao Ato Institucional de 9 de abril. Em pouco mais de dois anos o País foi do presidencialismo ao parlamentarismo, voltou ao presidencialismo e acabou nos braços da ditadura.

A 8.ª República está prestes a acabar. O que virá depois não se sabe. Ao permitir a reeleição do presidente da República, a Emenda n.º 16/1997 trouxe as piores consequências. Diante da guerra travada contra a covid-19 não dispomos da liderança de alguém como De Gaulle ou Winston Churchill. Se Deus quiser, até 2022 precisamo-nos conformar com o trêfego, instável e afoito Jair Bolsonaro.

ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Opinião por Almir Pazzianotto Pinto