No centenário do fim da 1.ª Guerra Mundial, no mês passado, em Paris, o presidente francês, Emmanuel Macron, foi incisivo ao condenar o nacionalismo, por ser justamente o oposto ao patriotismo, a ponto de o trair. Mitterrand já dissera que o nacionalismo é a guerra. De Gaulle tem frase famosa distinguindo patriotismo de nacionalismo, valendo repetir seu ensinamento: “Patriotismo significa que o amor por seu próprio povo vem em primeiro; nacionalismo, todavia, consiste que o ódio aos demais povos vem em primeiro”.
Becker e Krumeich, dois autores, um francês e o outro alemão, em obra conjunta, La Grande Guerre – Une Histoire Franco-allemande, decifram o núcleo da 1.ª Guerra Mundial, que, a seu ver, foi uma guerra entre França e Alemanha, tendo por palco seus territórios e por vítimas principais, seus filhos. Originou-se ela em sentimentos de vingança, fruto de um nacionalismo irracional que nada tinha que ver com a vivência de valores de cada uma dessas nações. O nacionalismo foi a sua causa.
O patriotismo, enquanto compreensão do próprio modo de ser ao longo da História para afirmação de uma individualidade aberta ao diálogo com as demais pátrias, revela-se generoso. O nacionalismo, no entanto, fecha-se como uma religião laica, no dizer de Vargas Llosa, para em atos de fé encarar outras nações como inimigas.
Na contramão do presidente francês está o nosso presidente eleito, que se filia ao nacionalismo belicoso, à moda de Trump.
O slogan do presidente eleito, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não é apenas uma frase de efeito propagandístico. Revela-se, nesse dístico, uma contraposição inicial: o Brasil acima de todos vem a ser, sob o viés internacional, uma declaração de supremacia em face dos demais países, e o reconhecimento apenas de uma única outra força maior, superior, a de Deus.
A Nação estará a serviço de Deus e todos estarão a serviço de ambos, da Nação e de Deus. O que deveria ser um compromisso subjetivo a brotar da convicção íntima de cada qual se socializa na missão de engrandecer o Brasil para a glória de Deus. Desfaz-se o Estado laico.
Assim, não poderia ser outro o novo chanceler, cujas ideias, expressas no artigo Trump e o Ocidente (Cadernos de Política Exterior, ano III, n.º 6, 2.º semestre de 2017, pág. 323), se casam com o pan-nacionalismo do governo Bolsonaro. Nesse artigo defende ardorosamente o nacionalismo, ataca o cosmopolitismo, os órgãos multinacionais e considera os Estados Unidos a única sede legítima de resistência do que entende por “valores ocidentais”, pois estes se identificam com a fé cristã, que teria morrido na Europa, mas viceja nos EUA. A seu ver, a Europa é um espaço culturalmente vazio regido por valores abstratos.
O clima de confronto instala-se ao não realçar o chanceler o entendimento entre as nações como projeto, como atividade, pois destaca uma retrospectiva: seu olhar é para trás, em enaltecimento aos antepassados e à criação dos mitos. No seu modo de ver, o Ocidente não nasceu no diálogo nem na tolerância, mas sim na defesa de sua própria identidade cristã.
Os valores, a seu ver, só existem dentro de uma nação, no seio de uma cultura, e não no que chama de “éter multilateral abstrato”. Para ele, a identidade surge nas nações e o nacionalismo é indissociável da “essência do Ocidente”. E ressalta: o centro do Ocidente está não numa doutrina econômica ou política, mas no anseio por Deus, no Deus que age na História. Um pan-nacionalismo atuará pela família, pela liberdade, pelo país e por Deus. E a defesa desses valores dependerá da saúde e robustez nas nações. O Estado-nação é o veículo melhor para elevar a condição humana, diz o novo chanceler.
Esse o ideário anti-iluminista no qual a grande conquista da História europeia, o Estado Democrático de Direito, não é considerada valor nuclear do Ocidente. O conceito universal, genérico, de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e têm capacidade para gozar esses direitos e liberdades, sem distinção de espécie alguma, torna-se de menor relevo em face da visão orgânica de comunidade em que se desenrola a História na qual “Deus age”.
Importantes são, portanto, valores e crenças forjados em determinado território, bem como a família, os heróis míticos do país e Deus, a serem preservados e louvados pelo Estado-nação. Nesse diapasão, não poderia deixar de haver desprezo pelo cosmopolitismo, visto como um complô para dissolução dos valores do Ocidente, hoje assegurados unicamente pelo nacionalismo norte-americano, merecendo desconsideração as decisões da Corte de Direitos Humanos ou os documentos da Comissão Europeia...
Em nova entrevista, o neocruzado diz que combaterá pautas abortistas e anticristãs, bem como alarmismos climáticos.
Já se fez sentir sua influência, na medida em que o Brasil, às vésperas da reunião da 24.ª sessão da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a se realizar Polônia, para implementar o Acordo de Paris, desistiu de sediar a reunião de 2019.
Foi uma decisão de Bolsonaro, por não desejar em reunião no Brasil vir a anunciar a saída do Acordo de Paris em defesa do interesse nacional, pretextando prejuízo decorrente do projeto Triplo A. Esse é um projeto controvertido de corredor ecológico no norte da América do Sul, de 136 milhões de hectares, dos Andes ao Atlântico, proposta de fundação colombiana que nada tem que ver com o Acordo de Paris. Já se sente, portanto, o prejuízo da simbiose entre o presidente eleito e seu chanceler, antimultilaterista, em prejuízo da imagem positiva do Brasil, pioneiro no cenário internacional em defesa do meio ambiente.
Esse retrocesso casa com a cultura relegada a segundo plano, entregue a um ministro que nessa área apenas sabe tocar berimbau.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA