As devastadoras inundações no Rio Grande do Sul resultaram em mais de 170 mortes e deslocaram mais de 420 mil pessoas. Embora seja a pior catástrofe natural do Estado em quase um século, movimentos populacionais em massa desencadeados por mudanças climáticas não são uma novidade no Brasil. Nas últimas duas décadas, pelo menos 8 milhões de brasileiros migraram devido a tempestades, inundações, incêndios florestais, secas ou aumento do nível do mar. Só em 2023, aproximadamente 745 mil pessoas foram deslocadas por eventos climáticos extremos combinados com os efeitos do El Niño. Os dados revelam tanto os perigos das mudanças climáticas quanto o despreparo de governos e sociedades para enfrentar esses desafios.
A decisão de ficar ou partir não é apenas motivada por eventos climáticos. Riscos socioeconômicos persistentes, como insegurança alimentar, pobreza, desigualdade e acesso a serviços básicos, desempenham um papel central. No entanto, não se sabe exatamente quantos brasileiros estão se mudando devido às mudanças climáticas porque não existem sistemas centralizados de registro para monitorá-los. Enquanto os eventos extremos geram manchetes, as pessoas vulnerabilizadas e deslocadas são em grande parte invisíveis.
Os países da América Latina e do Caribe enfrentam um futuro de ameaças crescentes, como inundações, incêndios florestais, aumento do calor e do nível do mar. No Brasil, as temperaturas devem subir entre 1,7°C e 5,3°C até o final do século. A precipitação anual e as secas devem aumentar no norte, centro e sul do País. Pelo menos 2 mil dos 5.568 municípios são “extremamente vulneráveis” e precisam de planos de “emergência climática”. No entanto, apenas 14 dos 26 Estados elaboraram estratégias que priorizam a adaptação e a resiliência relacionadas ao clima.
Líderes federais, estaduais e municipais precisam desenvolver e implementar uma resposta coordenada interagencial que seja proporcional à escala da ameaça. O próximo Plano Nacional sobre Mudanças Climáticas e o Fundo Verde para o Clima devem abordar a mobilidade climática, incluindo projetos-piloto nas áreas mais vulneráveis. O Plano Nacional de Adaptação (PNA), elaborado há uma década, precisa de uma atualização. O Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) também deve começar a monitorar a mobilidade climática.
O Brasil precisa adotar uma postura proativa em relação às crises climáticas, fortalecendo a resiliência. Isso exigirá a expansão das capacidades de alerta precoce e resposta. Investimentos em estratégias de adaptação baseadas em ecossistemas devem ser direcionados para áreas de expulsão e de realocação, a fim de minimizar os riscos antes, durante e após a movimentação das pessoas. Outras prioridades incluem melhorias na infraestrutura em comunidades propensas a inundações e costeiras, maior acesso a culturas e gado resistentes à seca, e medidas para qualificar e requalificar pessoas cujos meios de subsistência serão impactados pelas mudanças climáticas.
As autoridades podem avançar atualizando a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) e o PNA para refletir os riscos da mobilidade climática. A versão mais recente do PNA destaca as ameaças dos eventos extremos e os impactos nas oportunidades de emprego e padrões de migração, especialmente entre os pobres. Também menciona o aumento dos “refugiados ambientais” e a migração para as cidades, apresentando uma estratégia para realocar populações em áreas prioritárias. Mas tudo isso requer atualização e aceleração, incluindo um financiamento adequado do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, potencialmente, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial.
Diante da certeza de que os choques e tensões climáticas vão aumentar, são necessários passos mais ousados. O Brasil poderia se inspirar na Colômbia, que está prestes a aprovar uma nova lei de “mobilidade climática” (Projeto de Lei 299), que especifica os direitos das populações afetadas, propõe um registro unificado para monitorar os movimentos populacionais e atribui responsabilidades claras para a ação, desde o nível central até o local. Ou no Chile, que já investiu em planejamento preparatório para populações deslocadas. Além disso, em vários Estados caribenhos, incluindo Santa Lúcia, as autoridades estão investindo na restauração de terras costeiras para reduzir a probabilidade de realocação. O Brasil deve expandir os esforços para formalizar assentamentos precários, investir em habitações seguras e sustentáveis e regularizar a posse da terra.
Como grandes cidades da China e da Indonésia aos EUA e Europa, que estão sendo sobrecarregadas pelo aumento do nível do mar, o Brasil pode ter que construir cidades inteiramente novas. No Rio Grande do Sul, isso já é uma possibilidade real, como explicou o vice-governador do Estado. Com mais da metade de todos os brasileiros vivendo a menos de 150 quilômetros da costa, esses desafios podem estar mais próximos de casa do que muitos imaginam.
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COFUNDADORES DO INSTITUTO IGARAPÉ