Pode-se encontrar alguma diretriz apaziguadora de nossas angústias nos discursos dos presidentes dos Estados Unidos (despedida de Obama, posse de Trump) e na entrevista do papa Francisco ao jornal El País? Há nesses textos visões de mundo reveladoras de alternativas passíveis de formar um quadro valorativo orientador de condutas nos planos político, social e individual?
É importante vislumbrar os fundamentos em que se lastreia cada exposição, a partir dos quais se extrai, consequentemente, uma diretiva de agir.
Em seu discurso, Obama, na tradição americana, com consciência histórica, refere-se aos fundadores da nação, reiterando o compromisso iluminista de serem os homens dotados de direitos inalienáveis, como a liberdade, vindo os americanos a escolher a República, e não a tirania. Os fundadores, diz Obama, sabiam que a democracia pressupunha a solidariedade, cabendo enfrentar a desigualdade com a criação de oportunidades econômicas para todos e o pagamento de parcela maior de impostos pelos mais ricos.
Mas a desigualdade enfrenta, diz Obama, o desafio da discriminação em vários setores: na habitação, na educação, no sistema de justiça. Mas a discriminação não atinge apenas o negro, afeta o refugiado, o imigrante, o transgênero e mesmo o homem branco de meia idade, cujas crenças estão sendo postas em jogo.
Cumpre, então, para Obama, dar primazia à razão e ao Direito, com respeito aos direitos humanos, à liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, num mundo onde há uma multifária fragmentação da mídia e uma polarização das opiniões. Mesmo diante do terrorismo, diz Obama, há de se lutar preservando nosso modo de ser e nossos valores. Portanto, sem contradição, cabe vencer o terror não deixando de disseminar os direitos humanos, abominando a tortura e consagrando os direitos da mulheres e do LGBT, para ampliar a democracia em todo o mundo.
Dentre tantas questões levantadas, como a defesa do meio ambiente, Obama com sensibilidade valoriza a existência efetiva em face da virtual: “Se você está cansado de argumentar com desconhecidos na internet, experimente com um desconhecido na vida real”.
Também desce ao concreto diante da discriminação, ao afirmar que se supera a diferença pela empatia, ao conseguir colocar-se no lugar do outro, pois só assim os corações mudam.
Totalmente voltado para o concreto, o papa Francisco mostra suas origens como o bispo das ruas. E propõe uma revolução franciscana: denuncia o clericalismo e a anestesia do saber sabido da burocracia vaticana, para enaltecer a proximidade com as pessoas, o ser irmão do próximo, o tocar e ver a necessidade do outro. Valioso, para Francisco, é quem cuida de outrem, seja de seus filhos, de seus pais ou avós após trabalhar o dia todo. Destaca a santidade anônima dos que vivem para os demais, silenciosamente.
O papa Francisco, no plano mais amplo, prega ações concretas no auxílio à integração do imigrante ou à libertação das mulheres exploradas por redes de prostituição.
Mas a riqueza do real, da comunicação efetiva entre os homens, pode se perder no mundo virtual, diz Francisco, quando pessoas jantam e não se falam, ocupadas em enviar mensagens a terceiros que estão longe. Diz Francisco: “O concreto é inegociável em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas”.
Perguntado sobre as políticas populistas, Francisco alerta que Hitler não roubou o poder, foi eleito por seu povo e o destruiu, pois nos momentos de crise se busca um “salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com muros, com arames farpados, com qualquer coisa dos outros povos que podem nos tirar a identidade”. Ao isolacionismo do muro prega o diálogo.
Em seu discurso de posse, Trump desconsidera os valores fundantes da nação americana, para, com exclusiva perspectiva pragmática, proclamar: daquele instante em diante tudo será diferente, pois o povo se tornava o governante do país. Após denunciar estar a nação em frangalhos e o povo, desassistido, declara que “a carnificina americana para aqui mesmo e para agora”. Com ele chegou a salvação.
Se houve enriquecimento de outros países e defesa de fronteiras alheias com a riqueza americana redistribuída no mundo inteiro, isso “já é passado”, diz Trump. “Agora estamos olhando somente para o futuro. (...) De hoje em diante uma nova visão governará a nossa terra. De hoje em diante só haverá a América em primeiro lugar. (...) Nós brilharemos para que todos nos sigam”. Assim, não há passado, não há História, só o presente regenerador e o futuro promissor.
Às angústias que nos assolam os textos lembrados trazem indicações de conduta. Trump tem a receita mais fácil de ser seguida: rompe o diálogo, desconsidera a situação do outro, aventa obter o sucesso olhando apenas para o próprio quintal e garante a grandeza futura plenamente satisfatória, em função da qual se faz tábula rasa de princípios ao admitir a tortura ou o desprezo ao meio ambiente. É cômodo adotar esse caminho de promessas.
De amplo espectro, realça-se, todavia, nos textos de Obama e de Francisco o caminho do concreto em duas vertentes: na proximidade e identidade com o outro e na efetiva comunicação com o outro. São desafios para escapar da frustração de restar alienado, como mero adepto dos direitos humanos no plano da declaração abstrata.
Obama propõe a empatia: colocar-se na posição do outro para mudar corações, ao tratar da discriminação; Francisco quer tocar o próximo. Obama sugere discutir com um desconhecido real, e não virtual. Francisco diz ser o concreto inegociável, não devendo a família trocar mensagens com terceiros distantes durante o jantar. O desafio é descer ao concreto. Agir, e não apenas proclamar.
Fácil é construir muros. Complicado é abrir o caminho do diálogo olhando nos olhos do outro. *ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SENIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA