O Brasil acaba de bater um recorde histórico. E essa não é uma boa notícia. A emissão de gás carbônico em 2024 superou o marco anterior, do ano de 2007, e o número de queimadas aumentou em quase 100% em relação a 2023. Os dados são do Serviço de Monitoramento Atmosférico Copernicus (Cams), da União Europeia. O resultado direto desse fenômeno é o agravamento da poluição atmosférica, que afeta a todos, mas é entre as crianças na primeira infância que ele se revela mais nefasto.
Você já reparou como uma criança pequena respira rapidamente? Não é só impressão. Ela respira 50% mais ar por quilograma de peso corporal do que adultos. Isso é um agravante para aquelas que vivem em locais poluídos. A baixa estatura também joga contra nesse contexto: elas ficam mais próximas da altura dos escapamentos e do nível do chão, onde estão concentrados os maiores níveis de poluentes. A poluição é muito mais danosa para as crianças e 90% delas, no recorte abaixo de 15 anos – ou dois bilhões em todo o mundo – respiram ar com nível de poluição muito acima do recomendável (Organização Mundial da Saúde). Durante a gravidez e nos primeiros anos de vida, os altos níveis de poluição podem causar doenças crônicas e até a morte. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria tem um dado alarmante: doenças associadas à poluição do ar matam cerca de 465 crianças menores de cinco anos por dia.
Trata-se de um fenômeno climático, que engloba, além das queimadas e da poluição, o aumento do calor, outra grave ameaça à primeira infância. O Unicef estima que 820 milhões de crianças e adolescentes, mais de um terço do total no mundo, estão atualmente expostas a ondas de calor, com alto risco para a saúde. Um estudo divulgado neste ano pelo Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard mostra que o aumento das temperaturas pode afetar o desenvolvimento infantil, enfraquecer o sistema imunológico de crianças na primeira infância e aumentar o número de partos prematuros e de nascimentos de bebês com baixo peso.
Novamente, são as características peculiares de seu momento de desenvolvimento que as tornam mais vulneráveis a tudo isso. Quem tem crianças pequenas por perto deve ter percebido como elas esfriam e esquentam rapidamente. Num dia frio, mal saem do banho quente e já começam a esfriar. Os adultos entram numa corrida contra o ambiente para conseguir agasalhá-las antes de vê-las tremendo. Isso ocorre pela dificuldade que o organismo na primeira infância tem de regular a própria temperatura. Uma das razões para essa dificuldade natural em conservar ou liberar calor é o fato de o corpo das crianças não transpirar da mesma forma que o das mais velhas ou o dos adultos. Nelas, o excesso de calor pode afetar o funcionamento dos rins, o desenvolvimento muscular, levar a convulsões e, em casos extremos, ao coma com risco de morte. Esses perigos existem ainda na fase intraútero, em que altas temperaturas podem reduzir o fluxo de sangue na placenta e causar desidratação e inflamação.
O risco da exposição ao calor e à poluição é maior entre crianças na primeira infância porque nesse período muitas funções vitais e órgãos estão em desenvolvimento. Os tecidos corporais estão imaturos e as células do trato respiratório possuem maior permeabilidade por não estarem totalmente desenvolvidas. O sistema imune ainda está em formação. O cérebro está na principal fase de desenvolvimento, assim como o pulmão, que só estará desenvolvido por completo aos 6 anos de idade.
A degradação da natureza traz doenças na mesma medida em que o contato saudável com ela promove saúde. Durante o isolamento causado pela pandemia de covid-19, uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro aferiu que aproximadamente um quinto (19,4%) das crianças de até 5 anos estavam nos níveis de risco no que se refere à saúde mental. A pesquisa mostrou que brincar ao ar livre é a principal medida de proteção para evitar esse quadro.
Atividades na natureza contribuem para a força motora, o equilíbrio e a coordenação das crianças e podem reduzir a tristeza, a raiva e a fadiga, melhorar a atenção e as demais funções cognitivas. Exposição regular à luz natural e ao verde podem ajudar diabéticos a alcançar níveis saudáveis de glicose no sangue.
Não faltam evidências da fragilidade da criança na primeira infância frente aos problemas climáticos que enfrentamos hoje, nem sobre os benefícios que o contato com a natureza proporciona. Nesse cenário, o que podemos fazer agora? Não é uma pergunta retórica; este é um convite à reflexão de todos nós.
Há pelo menos duas vertentes de comportamento que nos tornam todos – nós, os cidadãos comuns – atuantes na agenda de proteção do clima. A primeira é incorporar a preocupação com a natureza em todas as nossas rotinas – do descarte do lixo à adoção de alternativas de transporte mais amigáveis ao meio ambiente. Não é tarefa simples: muitas vezes, são ações que demandam mais tempo, ou a adoção de hábitos diferentes daqueles que temos incorporados. Mas vale a pena. Não se trata apenas de deixar um planeta habitável para as próximas gerações. Trata-se de respeitar as crianças que já vivem nesta nossa Terra.
Os municípios são os que melhor conhecem as suas comunidades. Eles sabem quais as maiores dificuldades que a população enfrenta no calor; onde há falta d’água, pouca sombra, moradias montadas com materiais com pouca refrigeração (como placas metálicas) e aglomeração de pessoas. É importante focar também nas unidades escolares e de saúde com maior concentração de crianças pequenas para priorizar os investimentos para esses públicos. Em parceria com o Estado e a União, os municípios podem adotar medidas mais eficazes de preservação ambiental e de controle da emissão de poluentes. Em paralelo, as medidas de fortalecimento dos programas voltados à primeira infância são vitais tanto para apoiar as famílias nos cuidados que devem ser tomados nos contextos de aumento de calor e de poluição quanto para atender com prontidão gestantes e crianças, quando necessário.
Está em nossas mãos fazer a nossa parte e também cobrar dos gestores, em todos os níveis, que cada um deles assuma a sua responsabilidade para combater os riscos que ameaçam a todos, mas, principalmente, às crianças, o elo mais frágil e potente de qualquer sociedade, no presente e no futuro.
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CEO DA FUNDAÇÃO MARIA CECILIA SOUTO VIDIGAL, YOUNG GLOBAL LEADER DO FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL, É PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO ESCOLHAS