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Opinião|Concessões regionalizadas de água e esgoto e a escolha do quadro regulatório

Um olhar indiferente ou açodado no momento da estruturação poderá significar futuramente retrabalho, custos, tempo e uma percepção negativa da população

Por Geraldo Sant’Anna de Andrade Júnior

Transcorridos quatro anos após sua instituição, os desdobramentos da reforma trazida pela Lei n.º 14.026, de 15 de julho de 2020, estimulam um olhar mais aprofundado sobre a regulação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário quanto ao seu desenho no âmbito dos projetos de universalização. Os relatos noticiados sobre a insatisfação relativa ao aumento das contas de água, as contendas regulatórias e os paliativos adotados, assim como os dados utilizados para a estruturação das concessões no Estado do Rio de Janeiro, têm alimentado o debate sobre os impactos das opções escolhidas pelos projetos de universalização desses serviços. A discussão faz emergir a preocupação prática acerca da concepção do quadro regulatório considerado como premissa para esses projetos e sob o qual os serviços concedidos deverão ser prestados.

Lançando mão dos ensinamentos da literatura setorial e ao mesmo tempo sem ter o atrevimento de restringi-la, dentro do que pode ser conceituado como quadro regulatório de uma concessão estão as escolhas sobre como a tarifa dos serviços será calculada, a estrutura da tabela de preços cobrada de cada grupo de usuários (estrutura tarifária), a metodologia de reajuste e revisão das tarifas durante a vigência do contrato, a definição dos direitos e deveres dos consumidores, etc. Além disso, também podem ser inseridos nesse quadro os aspectos de governança e de processos das entidades responsáveis pela regulação dos serviços. Para que esses assuntos não se afastem do cotidiano das pessoas em geral, “no final do dia”, essas opções produzem impactos no quanto vai ser pago pelos consumidores e como será feito o trabalho da entidade que vai autorizar a cobrança dessa quantia, a qual deverá, entre outras coisas, sair do bolso dos usuários.

O apelo ao estudo e tratamento desses aspectos regulatórios em uma prestação de serviços de água e esgoto ganha um dimensionamento maior no contexto da universalização perseguida após a edição da Lei n.º 14.026/2020. As diretrizes dessa legislação procuraram incentivar a participação privada na prestação desses serviços por meio de concessões regionalizadas em blocos de municípios, enquanto se tenta estabelecer uma normatização referencial de regulação. Isso tende a demandar abordagens regulatórias mais contratuais em razão de as principais regras e os procedimentos de remuneração e de formação da tarifa serem definidos nos termos dos contratos de concessão, requerendo assim maior atenção no momento da modelagem desses instrumentos.

De acordo com dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), até o ano de 2023, havia em estruturação no portfólio do banco pelo menos sete projetos regionalizados de concessão, contratados por governos estaduais. Essa carteira totalizava um investimento estimado na ordem de R$ 61,2 bilhões para a universalização dos serviços nas áreas de escopo dos projetos.

Em paralelo às modelagens estruturadas pelo BNDES, a diligência do processo de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) estima a execução de investimentos na ordem de R$ 66 bilhões e desencadeou discussões recentes acerca da necessidade de adequações na forma de cálculo dos preços a serem pagos pelos usuários, de modo a viabilizar atratividade para os investidores interessados nesse business case.

Esses projetos têm estimado a realização de compromissos de investimentos vultosos ao longo de um horizonte de tempo significativamente longo e incerto. Uma das principais justificativas para a adoção dessas escolhas pelos governos tem sido a urgência dos investimentos necessários à universalização dos serviços. Uma motivação sensivelmente legítima dados os significativos déficits de atendimento e a inquietante realidade verificada no País quanto à carência de serviços de saneamento. Contudo, como esses investimentos serão sustentados por meio de tarifas, outras provocações parecem oportunas e igualmente válidas. Saber como as tarifas serão pagas e como elas irão garantir, simultaneamente, a sustentabilidade econômico-financeira da prestação e o acesso aos serviços pela população parece naturalmente ser um exemplo dessas reflexões.

Ao espelhar os planos de negócio dos projetos regionalizados já estruturados nos Estados do Rio de Janeiro e de Alagoas, nos anos de 2020 e 2021, é possível identificar que algumas premissas do arranjo anterior vêm sendo mantidas na concepção do novo modelo de negócio ou business case concedido. Talvez uma das evidências mais representativas e nevrálgicas desse diagnóstico seja a manutenção das tabelas tarifárias vigentes. Em tese, cada segmento ou faixa de consumo ali tabelados foram ou estão estruturados com base em objetivos de política pública, frequentemente conflituosos e relacionados principalmente à sustentabilidade econômico-financeira da operação e à acessibilidade pelos usuários aos serviços. Além disso, o contexto histórico de concepção das tabelas mantidas é diferente do contexto no qual o modelo de negócio das concessões tem sido estruturado. Os blocos regionais concedidos têm um dimensionamento próprio da área de exploração, abrangendo uma base de consumidores reconfigurada e contemporânea em seus padrões de interação com os serviços, em relação à situação anterior às concessões.

Nesta abordagem, a importância da discussão sobre o exemplo já referenciado não é colocada prioritariamente na escolha adotada em si, mas na necessidade de análises aprofundadas que justifiquem a opção. Desde que estudadas, testadas ex-ante quanto aos seus impactos, discutidas de forma transparente e aprovadas em relação à maximização dos benefícios para toda a população, as opções podem ser utilizadas. E é essa condição que passa geralmente desapercebida e para a qual se requer maior ressonância e atenção.

O estudo e a análise que instruem a escolha relativa a cada um dos componentes do quadro regulatório de uma concessão envolvem uma abordagem complexa, iterativa, cuidadosa, exaustiva e que nem sempre, ou na maioria das vezes, tem seu tempo de execução compatível com as ditas “janelas de oportunidade” para a realização da política pública. Todavia, um dos princípios considerados pela boa regulação pode residir na produção de benefícios que justifiquem custos, considerando a distribuição dos efeitos pela sociedade. Assim, um design regulatório não considerado ou concebido de forma precária e anacrônica tem implicações significativamente negativas para a entrega regular dos serviços concedidos, permitindo a ocorrência de práticas abusivas e oportunísticas em detrimento da produção de bem-estar dos seus destinatários e, por consequência, comprometendo a avaliação global sobre o êxito desses projetos.

O necessário aprofundamento dessas reflexões não é nenhum fato novo. Os achados da experiência internacional indicam lições aprendidas de forma recorrente. Os apontamentos da literatura não têm sido silentes em indicar essa preocupação. Em linhas gerais, não faltam elementos para justificar uma abordagem mais esmerada e exaustiva acerca da concepção e escolha do quadro regulatório dos projetos de universalização de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. As disposições de um arranjo regulatório podem viabilizar ou comprometer a ampliação do acesso aos serviços, principalmente pelas pessoas pobres. Dessa forma, esse cuidado é perfeitamente convergente com a universalização do acesso a esses serviços pela população. Um olhar indiferente ou açodado a essas questões no momento da estruturação desses projetos poderá significar futuramente retrabalho, custos, tempo e uma percepção negativa da população referente às escolhas adotadas.

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GRADUADO EM ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS PELA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO (UPE), É ESPECIALISTA EM PPP E CONCESSÕES PELA ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO, COM MÓDULO INTERNACIONAL PELA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS (LSE)

Opinião por Geraldo Sant’Anna de Andrade Júnior

Graduado em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco (UPE), é especialista em PPP e Concessões pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com módulo internacional pela London School of Economics (LSE)