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Opinião | Constituição e poder

Promulgada a Carta de 1988, revelou-se o que o povo queria. Nela está determinado e descrito o seu desejo. Se o poder emana do povo, ele é a autoridade primeira

Por Michel Temer

Todo poder emana do povo, diz a Constituição federal. E daí a inevitável pergunta: onde está a vontade do povo? Respondo: está na Constituição. Ela é produto da sua vontade. Melhor me expresso: em 1987, o povo, milhões de pessoas, não pôde se reunir em praça pública para dizer como se reconstituiria o Estado brasileiro. Por isso, designou representantes que compuseram a Assembleia Constituinte. Eram, na época, deputados e senadores. Todos constituintes. Todos agindo em nome do povo. Promulgada a Constituição em 5 de outubro de 1988, revelou-se o que o povo queria. Nela está determinado e descrito o seu desejo. Se o poder emana do povo, ele é a autoridade primeira, inicial, inauguradora.

As autoridades designadas pelo titular do poder são constituídas e, por isso, secundárias. E, porque secundárias, devem prestar obediência à vontade primeira, que, como dito, está expressada na Carta Magna de 1988. Daí porque a desobediência à Constituição pelas autoridades constituídas (secundárias) é agressão à vontade do povo (primária). Portanto, obedece-se ao povo quando se cumpre rigorosamente o texto constitucional.

Não é sem razão também que o povo, que pode exercer diretamente o poder, por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular para projetos de lei, o exerce indiretamente por meio de órgãos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Disse: exercerão em meu nome, serão independentes (significa: terão competências próprias, orçamento e administração próprios), mas harmonizarão suas atividades. Assim, toda vez que há desarmonia haverá inconstitucionalidade, porque se desobedece à vontade primeira.

Também assim ocorre com o tema da paz. O preâmbulo (de pré ambulare), ordem escrita que os constituintes tiveram de obedecer, determina que o Estado a ser criado seja comprometido “(...) na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)”. E, no seu artigo 4.º, VII, ao tratar das relações internacionais, estabeleceu como princípio a “solução pacífica dos conflitos”. Mais ainda, quando cuida dos artefatos nucleares, fixa, no artigo 21, XXIII, “a”, que “toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional”. Ou seja: nada de beligerância com Estados estrangeiros. Paz.

No plano interno, o preceito que estabelece serem “todos iguais perante a lei (...)” (artigo 5.º, caput) também se pauta pela ideia da paz. Ou seja: unam-se todos, porque são iguais. Por acaso significa que não pode haver embate de ideias, divergências conceituais e até ideológicas? Não! O debate de ideias é concepção que decorre do artigo 1.º, segundo o qual o Brasil é “(...) Estado Democrático de Direito (...)”. Na democracia, é indispensável a oposição, ao lado da situação. Aquela fiscaliza, controla, critica, impedindo o poder único. Este, contudo, é o conceito jurídico de oposição. Mas o que se pratica é o conceito político. Ou seja: se eu perdi a eleição, devo destruir os que venceram. Isso ocorre na União, nos Estados e nos municípios. E de há muito. Não é isso que o povo determinou aos agentes políticos, uma vez que tal conduta fere a concepção democrática de oposição, cujo dever é fiscalizar para aprimorar a governabilidade.

Como, de resto, todo novo governo, se nascido da oposição, quer destruir o governo anterior. Não reconhece nunca o seu lado positivo. Pode criticar eventuais equívocos, mas esta não há de ser a tônica marcante do mandato. Dou exemplos: custa reconhecer que o presidente Sarney, com seu equilíbrio e sua maturidade, foi um dos artífices da redemocratização? E que o presidente Collor incentivou a melhoria do setor automobilístico? E reconhecer o presidente Itamar, com o Plano Real, engendrado pela equipe de FHC? E este, com a Lei de Responsabilidade Fiscal e as reformas de Estado? Depois, o presidente Lula, que tornou visíveis a miséria e meios de combatê-la, a que deu sequência a presidente Dilma? E o meu governo, com a recuperação da economia, as reformas feitas, a queda da inflação e dos juros? E o presidente Bolsonaro, que deu sequência às medidas do nosso governo?

A civilidade governamental determina essa conduta. Lamentavelmente, não é o que ocorre. Quer-se sempre alimentar a polarização, a radicalização. Nunca a pacificação, a harmonia, o equilíbrio. Com isso, as autoridades secundárias ferem a ordem da autoridade primeira.

Estas considerações, modestíssimas, mas importantes, se aplicam à ideia de que o presidente não governa sozinho. Depende do Legislativo. Eles governam juntos. Afinal, o Executivo edita medidas provisórias, remete projetos de lei e de emendas à Constituição. Precisa vê-los aprovados para a execução de sua política governamental. Os membros do Parlamento, como autoridades também constituídas, haverão de exercer sua atividade colaborativa juntamente com o Poder Executivo.

Por tudo isso, seria bom relembrar, repetidamente, o presidente Dutra quando perguntava, referindo-se à Constituição de 1946: “O que diz o livrinho?”.

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ADVOGADO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Opinião por Michel Temer