Em boa medida, a literatura científica dedicada aos problemas da administração pública é motivada por contextos de crise. É comum ver na introdução de livros e artigos que suas análises e proposições se justificam pela extrema falta de confiança da população no governo e no serviço público. Isso foi verdade no século 19 e continua prevalente em 2025.
Considere, por exemplo, The Study of Administration, publicado por Woodrow Wilson em 1887. O ex-presidente americano estava preocupado com a falta de profissionalização do serviço público em um contexto de problemas sociais crescentes. Na época, a troca quase total de servidores a cada eleição minava a continuidade administrativa e, com isso, impedia a implementação de soluções complexas.
Para Wilson, separar política e burocracia era essencial, e a estabilidade do funcionalismo seria a garantia desse avanço. Ter servidores permanentes criaria uma especialização nos quadros técnicos do governo, melhorando a entrega de serviços públicos. O papel do servidor permanente seria o de implementar políticas públicas de maneira impessoal, apolítica e isonômica – algo muito parecido ao que estava sendo proposto por Max Weber do outro lado do Atlântico.
Weber e Wilson provavelmente concordavam com outro benefício da estabilidade. Sabendo que seu futuro profissional não dependia de políticos, servidores públicos teriam um incentivo maior para se recusar a obedecer a uma ordem ilegal. Assim, como aprendemos ao longo do tempo, essa proteção nos ajudaria a garantir o Estado de Direito.
Quase cem anos depois, o professor B. Guy Peters expôs preocupação parecida ao escrever The Politics of Bureaucracy (1979). Em 1968, protestos eclodiram em boa parte do mundo também por conta da crise de confiança da população no Estado. A literatura da época buscava soluções não só para melhorar a entrega de políticas públicas, mas também para deixar a administração mais democrática.
Peters apontou que, mesmo insulada pelos concursos e estabilidade, a burocracia continuava politizada, com servidores enviesados por suas próprias preferências. A solução não era abolir a estabilidade. Isso seria arriscado demais. Pelo contrário, deveríamos flexibilizar nosso entendimento sobre o insulamento político da burocracia e instrumentalizá-lo ao planejar a resolução de problemas.
Isso aproximou Peters do professor Samuel Krislov, que, na mesma década, descreveu os benefícios dos vieses causados pela pluralidade de ideias e características individuais dos servidores públicos. Em Representative Bureaucracy, Krislov argumentou que servidores oriundos de grupos menos privilegiados entendem os dilemas enfrentados por seus semelhantes. Isso permite que, a partir dos seus vieses, aprimorem políticas públicas para atender a quem antes estava invisível.
É verdade que a estabilidade traz seus próprios problemas. De fato, David Osborne e Ted Gaebler propuseram seu enfraquecimento em Reinventing Government (1992). Isso era uma resposta às crises econômicas dos anos 1970 e 1980. Em tempos de contenção de gastos, os autores argumentavam que era preciso acabar com o comodismo dos servidores e apostar na criatividade empreendedora.
A solução, trazida ao Brasil pelo professor e ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, era fazer com que os setores público e privado fossem mais parecidos. As medidas ficaram conhecidas como a reforma gerencial. Uma de suas proposições era a adoção da avaliação de desempenho como instrumento para premiar servidores produtivos e punir improdutivos – incluindo a possibilidade de demissão.
Na prática, surgiram problemas. Quem define o que é produtividade e quais as suas métricas? Políticos, que podem usar os critérios para demitir desafetos e substituí-los por aliados? Consultores externos, com pouco entendimento sobre o funcionamento da máquina pública? Ou os próprios servidores, acusados de corporativismo para beneficiar seus pares?
Esse desafio limitou a eficácia das avaliações, tanto aqui quanto em outros países. Indo além, minou o argumento de que servidores poderiam ser demitidos a partir de métricas meritocráticas e impessoais. Ainda que a reforma gerencial tenha trazido benefícios incalculáveis, a tentativa de flexibilização da estabilidade não foi um deles.
A crise de confiança no governo e serviço público na qual vivemos hoje não é nova. Acontece de tempos em tempos, sempre acompanhada de soluções de todos os tipos. Algumas desconsideram a História e podem levar a problemas ainda piores.
Em outubro de 2020, o ex-presidente americano Donald Trump criou uma nova carreira para a qual teria o poder de contratar e demitir (Schedule F). O objetivo de longo prazo era substituir o serviço público permanente, removendo todos que se recusassem a cumprir sua agenda. Esse foi um dos primeiros atos que Joe Biden revogou quando chegou ao poder.
O maior risco de abraçar o fim da estabilidade é garantir aos políticos a habilidade de contratar e demitir por conveniência. Em tempos de polarização exacerbada e perigos democráticos, o custo da aventura é alto demais.
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PROFESSOR DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA FGV EBAPE, É PH.D. EM CIÊNCIA POLÍTICA