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Opinião | Da justa causa para a persecução penal

Criminalidade não se deduz ou se presume, mas se demonstra e se comprova, sem dúvidas.

Por Luiza Nagib Eluf

Na primeira aula de Processo Penal de qualquer faculdade de Direito, todos os alunos aprendem que para a instauração e o desenvolvimento de um inquérito policial, ou de um PIC – o procedimento investigatório criminal do Ministério Público –, ou de uma ação penal é preciso que se evidencie a “justa causa”, ou seja, o motivo apto a legitimar o constrangimento imposto à pessoa investigada. A propósito desse assunto, não posso deixar de pontuar um momento da minha vida: o exame para ingresso na nobre instituição do Ministério Público Paulista, em 1983. 

Na prova escrita, o tema sobre o qual teríamos de discorrer foi exatamente este: “Da justa causa para a persecução penal”. Precisamente essa foi a tese que a banca de concurso escolheu para fazer a triagem dos postulantes. Quem não conseguiu detalhar corretamente a importância do tema não obteve aprovação. Muito sábios os nossos examinadores à época, assim como o são até hoje, mas deixo aqui minhas homenagens ao saudoso e genial procurador de Justiça José Roberto Baraúna, professor de Processo Penal, pois a sabedoria dele guiou os meus passos até o final de minha carreira e até hoje. Era cristalina a preocupação do professor em zelar pelos direitos dos investigados, mesmo em se tratando de prova para selecionar membros do Parquet, e não da advocacia.

Já em meados do século passado, o Direito Penal e o processo penal foram consagrados nos ensinamentos de grandes juristas, como José Frederico Marques, Paulo Brossard de Souza Pinto, Roberto Lyra, Damásio Evangelista de Jesus, Dante Delmanto, Esther de Figueiredo Ferraz, Ivete Senise e Carlos Frederico Coelho, dentre muitos outros que nos ensinavam a ter extremo cuidado para nunca processar um(a) inocente. 

Tendo em vista que no Direito pátrio a ação penal cabe exclusivamente ao Ministério Público, com poucas exceções, é imperioso que o membro da instituição observe à risca os ditames legais para não incorrer em erro ou abuso de poder, causadores do constrangimento ilegal que justifica o habeas corpus.

Nos termos do artigo 648 do Código de Processo Penal, configuram-se o abuso de poder e o constrangimento ilegal quando não houver justa causa para investigar, ou seja, quando não houver o legítimo interesse consubstanciado nos indícios suficientes da existência de crime e de quem tenha sido o seu autor. 

É preciso prova real, e não presumida; prova efetiva, e não deduzida; prova material, e não imaginária ou fruto de mera ilação. Fatos reais têm de estar evidenciados a fim de se justificar a movimentação do aparelho repressivo do Estado contra uma determinada pessoa.

Além da acuidade em relação à perseguição penal somente com justa causa, outro cuidado fundamental que vem sendo negligenciado é o bloqueio de bens. Por vezes basta a pessoa estar sendo investigada para que se decrete o congelamento de todas as suas contas bancárias, seus imóveis, suas empresas, seus negócios em geral.

O bloqueio de bens é medida drástica, que somente deve ser aplicada em casos extremos, pois é proibição de caráter alimentar. Há pessoas em situação de não ter mais o que comer, pois os recursos foram todos, vejam bem, todos confiscados pelo Estado Leviatã antes do término do processo.

A Justiça, como se sabe à exaustão, é lenta. Mesmo o habeas corpus, remédio jurídico para a salvaguarda dos injustiçados, vem sendo negado por alguns tribunais, data venia, sem necessidade. Os montantes represados em nome de uma investigação são por vezes completamente desproporcionais aos eventuais e ainda não definitivamente provados prejuízos causados. 

É de perguntar: onde o Brasil foi buscar tais parâmetros? A política de terra arrasada não beneficia ninguém. O fechamento de empresas fará o País retroceder décadas, trará fome às populações carentes e poderá impossibilitar medidas administrativas de urgência, como o saneamento básico e o atendimento à saúde.

É preciso evitar a todo custo o abuso de poder, as conclusões apressadas, as vaidades do ego e as luzes da mídia. A defesa dos acusados e das acusadas merece ser ouvida pelos magistrados com a mesma atenção dispensada à acusação. Apontar o dedo é uma grande responsabilidade, tanto do membro do Ministério Público quanto do julgador. Ninguém pode partir da premissa de que o Brasil é “terra de ladrões”, “pátria sem lei” ou de “dilapidadores do erário”. Não se pode julgar e muito menos condenar “por atacado”, com base em lista de nomes de pessoas que possivelmente, um dia, talvez, quem sabe tenham praticado um ato lesivo.

Ideias preconcebidas sempre levam ao erro. Criminalidade não é algo que se deduz ou se presume, mas, sim, algo que se demonstra e se comprova sem nenhuma sombra de dúvida. O erro judiciário existe e é uma calamidade sem volta. A prepotência e a vaidade são causadoras de inimagináveis estragos. 

O Direito Penal, em sua pureza, é lindo e ao mesmo tempo delicado como um cristal fino e fácil de quebrar... O Direito esfacelado é um atalho para a barbárie.

* ADVOGADA. E-MAIL: LUIZAELUF@TERRA.COM.BR

Opinião por Luiza Nagib Eluf