Em novembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que “a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.
Essa decisão, em que pese fazer uma ressalva que visa a prestigiar a liberdade de religião ou crença e a laicidade colaborativa que caracterizam a nossa ordem constitucional, mantém o privilégio de confissões hegemônicas em detrimento de um imperativo de igualdade, que também deve ser observado no âmbito da questão religiosa.
A liberdade de religião ou crença é um direito fundamental estabelecido normativamente no Brasil desde 1890. O mesmo decreto que assegurou esse direito individual também consagrou a laicidade do Estado, proibindo o poder público tanto de estabelecer religião oficial ou preferencial, bem como de impedir o funcionamento de qualquer culto, ou ainda de fazer diferenciação entre as pessoas por motivo de crenças ou opiniões religiosas.
Desde então, nossa história constitucional vem consagrando esse modelo de relação entre Estado e religião, da mesma forma que nossa tradição jurídica e institucional vem conferindo, ao longo dos anos, um aspecto positivo à laicidade. A Constituição de 1988 ressalva a possibilidade de que a administração pública mantenha relações colaborativas de interesse público com instituições religiosas.
A diversidade cultural que marca a formação da sociedade brasileira traz consigo um leque multifacetado de manifestações religiosas, desde as religiões dos povos originários às confissões mais modernas, passando pelo catolicismo trazido pela colonização, pelo protestantismo étnico e missionário, bem como pelas religiões dos africanos em diáspora e de seus descendentes, pelo judaísmo, pelo islamismo, dentre tantas outras. Tudo isso permeado por muitas experiências de sincretismo e ecumenismo.
Porém, num campo religioso plural e complexo, frequentes são as notícias de episódios de intolerância religiosa, de profanação de templos e cultos, bem como de discriminação por motivo de fé. Tais acontecimentos revelam que, se por um lado a liberdade religiosa está plasmada como direito fundamental, por outro lado sua implementação e sua consolidação ainda encontram sérios desafios.
Por conhecidos motivos históricos, culturais e políticos, é grande a assimetria social existente entre as diversas manifestações religiosas no Brasil, seja em tamanho, seja em protagonismo, seja em participação no debate público. Há confissões notoriamente hegemônicas no Brasil, cujos símbolos sagrados, elementos de liturgia e mesmo os seus representantes e líderes, se fazem ostensivamente presentes no cotidiano público, em franca disparidade quando comparadas a outras manifestações minoritárias, que não possuem o mesmo alcance e, não raro, a mesma aceitação ou tolerância. E tal assimetria frequentemente alimenta e intensifica demonstrações de intolerância e de discriminação, as quais ferem, em última análise, o núcleo da própria liberdade religiosa.
É nesse ponto que se deve levar em conta que, assim como os demais direitos de liberdade, a liberdade de religião ou crença não só não é absoluta como também demanda um temperamento interpretativo a partir de suas relações com outros direitos também fundamentais. Um importante limite que se coloca de plano ao exercício da liberdade é a própria noção jurídica de igualdade. Em outras palavras, uma vez que todos são livres, todos são igualmente livres.
Portanto, o direito fundamental de liberdade de religião ou crença está entrelaçado ao direito fundamental de igualdade de religião ou crença. Todos são igualmente livres para professar a fé que assim desejarem, ou mesmo para não professar fé alguma.
O debate jurídico-político sobre a questão religiosa, num Estado laico, ainda que num viés positivo de laicidade, não pode se limitar a uma hermenêutica isolada do direito de liberdade de religião ou crença, pois assim tende naturalmente a favorecer as confissões hegemônicas, que possuem notoriamente mais liberdade do que as manifestações minoritárias. Por isso, nas discussões, reflexões e decisões sobre a relação entre Estado e religião, sejam elas administrativas, legislativas ou judiciais, ao lado do direito de liberdade religiosa e do princípio da laicidade, deve estar, necessariamente, o direito de igualdade religiosa, como chave indissociável de interpretação e de aplicação das normas jurídicas.
É fundamental que, a bem da promoção da liberdade de religião ou crença e da laicidade estatal, todas as manifestações de fé sejam igualmente contempladas e respeitadas. No âmbito da questão religiosa, esse é o caminho para que se atinja o objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária previsto na Constituição.
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PROFESSOR ASSOCIADO DO DEPARTAMENTO DE DIREITO E DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, É PESQUISADOR ASSOCIADO DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS EM DIREITO E RELIGIÃO (CEDIRE-UFU)