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Opinião|De volta ao Muro de Berlim

Economistas da Declaração de Berlim preconizam a ascendência dos governos (ação coletiva) sobre os mercados (ação individual)

Por Marcelo Guterman

Em sua edição de 8 de julho passado, o jornal Valor Econômico publicou a tradução de um artigo (Do Consenso de Washington ao de Berlim) que resume a Declaração da Cúpula de Berlim, publicada em 29 de maio, e que é um libelo por “um outro mundo possível” por parte de um grupo de economistas.

A ideia central da declaração assenta sobre a premissa de que o liberalismo selvagem, representado pelo Consenso de Washington, deixou para trás muita gente, e o ressentimento resultante deu origem aos movimentos de extrema direita que assolam a política contemporânea. Assim, para que a democracia possa recuperar terreno, é necessário um outro paradigma econômico, que tire das mãos dos mercados o nosso destino e o devolva às mãos dos governos e das pessoas.

E como atingir esse objetivo? A declaração elenca nove sugestões, das quais vou destacar duas. As demais referem-se a políticas industriais e de proteção ao meio ambiente (a íntegra pode ser lida aqui: https://newforum.org/en/the-berlin-summit-declaration-winning-back-the-people/). São elas:

• Reorientar as nossas políticas e instituições, deixando de visar à eficiência econômica acima de tudo e centrar-se na criação de uma prosperidade compartilhada e de empregos seguros e de qualidade;

• Estabelecer um novo balanço entre os mercados e a ação coletiva, evitando a austeridade autodestrutiva.

Destaquei essas duas sugestões porque resumem a visão desses economistas sobre o equilíbrio entre a ação do Estado e a ação dos mercados.

No primeiro ponto, os economistas sugerem um novo equilíbrio entre eficiência econômica e geração de bons empregos. Como sabemos, a eficiência econômica procura produzir mais com menos, inclusive com menos empregos, o que, em princípio, colocaria ambos os conceitos em polos opostos. Mas os economistas não falam de qualquer emprego. Os empregos precisam ser “seguros e de qualidade”. Ocorre que empregos “seguros e de qualidade” são gerados por economias altamente eficientes, em que os processos são automatizados e restam apenas os empregos de alto valor agregado. Economias com baixa eficiência geram empregados precarizados e inseguros, via de regra.

A menção à “prosperidade compartilhada” também parece estar de acordo com uma eficiência menor. Afinal, a criação de mais empregos (fruto esperado de uma eficiência menor) é a forma mais nobre de compartilhar a prosperidade. No entanto, há uma contradição com a própria palavra “prosperidade”. A eficiência econômica cria mais prosperidade que a ineficiência. Basta observar o contraste entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos para constatar esse fato. Assim, a verdadeira escolha se dá entre “pobreza compartilhada” e “prosperidade concentrada”, ainda que, mais uma vez, a experiência mostre que os países mais pobres (menos eficientes) têm índices de Gini piores que os países mais ricos (mais eficientes). Portanto, a “prosperidade compartilhada” acompanha a eficiência econômica, ao passo que a “pobreza concentrada” é característica dos países ineficientes.

A segunda sugestão volta a se referir a um novo equilíbrio, desta vez contrapondo os mercados à ação coletiva. Entende-se esse antagonismo se considerarmos que a “ação coletiva”, no sentido de todos os indivíduos caminharem numa única direção, somente é possível por meio dos governos. Esse conceito se antepõe aos “mercados”, que é a ação dos indivíduos em busca de seu próprio bem por meio de escolhas de consumo e investimentos. Essa interpretação é reforçada pelo uso do termo “austeridade”, que se refere inequivocamente à ação dos governos. (Aliás, falar em “austeridade” no momento em que os governos do mundo inteiro batem recordes de endividamento parece fora do lugar. Fecha parênteses.)

Os economistas da Declaração de Berlim, portanto, preconizam a ascendência dos governos (ação coletiva) sobre os mercados (ação individual), concentrando a sua crítica à “austeridade autodestrutiva” que os mercados exigiriam dos governos. O fim da austeridade serviria para que os governos pudessem implementar livremente estratégias de investimento no lugar dos mercados, sem se preocupar com a eficiência econômica, e focando na geração de empregos de qualidade, na distribuição de renda e no combate ao aquecimento global. Fecha-se o círculo.

No fundo, temos um esforço para trazer de volta o pêndulo que se afastou dos governos após a queda do Muro de Berlim (a escolha da capital da Alemanha para publicar a declaração talvez não tenha sido aleatória), quando ficaram absolutamente claros para o mundo os resultados das ações dirigidas por um governo central que não buscava a máxima eficiência econômica. A experiência mostra que governos são presas fáceis de elites extrativistas, e suas ações não são verdadeiramente coletivas, mas, antes, refletem as preferências dessas mesmas elites. Se a ideia é puxar de volta o pêndulo em direção ao Estado, todo cuidado é pouco para não ultrapassar os limites do Muro de Berlim.

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ENGENHEIRO, ANALISTA FINANCEIRO, É AUTOR DO LIVRO ‘DESCOMPLICANDO O ECONOMÊS’

Opinião por Marcelo Guterman

Engenheiro, analista financeiro, é autor do livro 'Descomplicando o Economês'