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Opinião|Debate político e bate-bocas apaixonados no Brasil

A debilidade do debate e a ausência de uma grande estratégia contrasta com o quadro de vulnerabilidades e potencialidades presentes em nosso país

Por Oscar Medeiros Filho

“Tinha razão aquele velho brasileiro que, escandalizado com a futilidade dos nossos debates políticos, lembrava a conveniência de, ao lado do Congresso Nacional, organizar-se uma comissão permanente de brasileiros de boa vontade, sem outra preocupação que a prosperidade e a grandeza da Pátria, para o fim de estudar e resolver os grandes problemas políticos de nossa terra. O Congresso ficaria para as parolagens inúteis, para os bate-bocas apaixonados, para as exibições teatrais (...).”

Se ao ler o trecho acima o leitor imaginou se tratar de uma crítica à futilidade dos nossos debates políticos atuais, enganou-se! Trata-se de um texto publicado por este jornal há quase 90 anos (O Estado de S. Paulo, 23/11/1935, página 3). A coluna Livros Novos apresentava aos leitores obras recém-publicadas de impacto nacional. Naquela ocasião, eram comentadas duas obras. A primeira era Projeção Continental do Brasil, de Mário Travassos, na qual o autor sugeria que somente sob o domínio da pluralidade dos transportes poderia o Brasil exprimir toda a força de sua imensa projeção coordenadora no cenário político e econômico sul-americano. Em suma, Travassos discutia a ideia de uma grande estratégia para a integração nacional e projeção de sua liderança no entorno regional. Destacando a relevância daquele livro, o colunista contrastava as ideias de Travassos com a aparente inércia dos representantes políticos da época: “Há, com efeito, problemas gravíssimos de política de que o Congresso jamais cogitou e que, entretanto, não podem continuar sem solução”; e conclui: “A execução desse plano é um dever político a que não nos podemos furtar”.

A segunda obra apresentada naquela coluna era Secca de 32, de Orris Barbosa, que tratava do flagelo da seca no Nordeste brasileiro e o pouco caso das políticas públicas para o seu enfrentamento. O colunista sugeria que o problema não se resolvia porque “de um lado, não houve espírito de continuidade nas administrações da República e, do outro, nem sempre a execução das obras obedeceu a um critério honesto”.

Passados quase 90 anos daquela publicação, podemos encontrar muitas similaridades entre aquele contexto e o modus operandi com que a política no Brasil tem sido conduzida. Se pudesse comparar o contexto em que vivia com o atual, certamente o colunista se surpreenderia com a permanência das parolagens inúteis e dos bate-bocas apaixonados. O evento da “cadeirada” ocorrido durante a campanha para a Prefeitura de São Paulo neste ano representa bem o nível de nossos debates, marcados pelas “lacrações” e pelos interesses intestinos de grande parte dos nossos candidatos.

Acrescente-se a esse quadro a repetição de escândalos e atos de corrupção, dos quais o mensalão e a Lava Jato constituem exemplos mais explícitos. O uso indevido de recursos públicos e favorecimentos políticos perpetuam práticas clientelistas do “toma lá, dá cá”, das quais o orçamento secreto constitui a mais nova moeda de troca entre o Executivo e o Legislativo.

No contexto atual do século 21, considerada a proliferação nas redes sociais da desinformação, tal prática tende a minar a confiança da população na própria política, contribuindo para um ambiente de apatia e desconfiança generalizada, agravando, ainda mais, a sensação de desconexão entre a ação política e o interesse público.

A debilidade do debate político e a ausência de uma grande estratégia contrasta com o quadro de vulnerabilidades e potencialidades presentes em nosso país. Se por um lado o Brasil parece refém da violência social e da insurgência criminal, por outro lado somos uma potência energética, ambiental e alimentar, de elevada estatura geopolítica e potencial estratégico. O quadro é complexo e demanda o envolvimento e a mobilização ativa da sociedade, especialmente de seus representantes políticos, para a solução dos grandes problemas nacionais.

A lista de temas relevantes e aparentemente negligenciados no debate político é extensa, incluindo, para além dos problemas crônicos da saúde e educação: o desenvolvimento econômico e a inovação tecnológica, envolvendo soluções soberanas para infraestruturas críticas, como o ciberespaço; o gargalo da infraestrutura logística que amplia o “custo Brasil”; o desafio da sustentabilidade, especialmente na Amazônia; a inserção internacional do Brasil e o futuro da relação com seus principais parceiros: China e EUA; o desafio da inclusão social e a redução das desigualdades regionais; a necessidade de uma ampla reforma administrativa do Estado brasileiro; além de tantos outros temas que precisam ocupar a agenda do debate político nacional.

Ficamos atentos a parolagens inúteis, enquanto o País queima e a Amazônia seca. Não conseguimos avançar em uma discussão mais aprofundada para o que hoje parece ser nosso maior desafio: o crime organizado internacional e o grau de violência social a ele relacionado. Há uma sensação de paralisia em relação a questões estratégicas, como a exploração sustentável de minerais na Amazônia (inclusive o petróleo), o combate à insurgência criminal, a soberania digital e a regulação do ciberespaço.

O descaso de grande parcela dos políticos brasileiros com uma grande estratégia não parece, infelizmente, ser um problema conjuntural, mas algo que atravessa gerações. A superação dessa condição sugere mudanças de cultura política, envolvendo um processo de longo prazo. Temos que escapar das armadilhas que nos aprisionam na lógica populista embaladas pelas redes sociais. Esperamos que o evento da “cadeirada” constitua um ponto de inflexão em que os bate-bocas apaixonados e as exibições teatrais se restrinjam aos ambientes de redes sociais e das “rodas de amigos”, deixando ao campo do debate político a discussão coerente à estatura das potencialidades e vulnerabilidades que o Brasil exige.

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DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO UNICEUB

Opinião por Oscar Medeiros Filho

Doutor em Ciência Política pela USP, é professor de Geopolítica na Escola Superior de Defesa e de Relações Internacionais no UniCeub

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