Comemorar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos remete a várias reflexões problematizadoras quanto à garantia de acesso aos direitos básicos a todo ser humano. Neste texto, pretendo destacar questões provocativas diante de realidades e vivências humanas do nosso tempo presente: os direitos humanos têm sido ampliados na esfera pública, de forma a garantir condição de vida mais participativa para a maioria das pessoas? Vale perguntar, ainda: diante de participação mais igualitária de um número cada vez maior de pessoas nos vários setores sociais, isso tem, de fato, possibilitado garantir a parcelas excluídas da sociedade o direito de liberdade, representatividade, visibilidade, vez e voz?
Destarte, cabe-nos refletir sobre e analisar a condição de vida participativa e de liberdade dos brasileiros diante dos avanços da modernidade e dos desdobramentos da contemporaneidade. Ou seja, é necessário refletir acerca da condição de vida dos brasileiros e seus avanços diante das diretrizes dos direitos humanos, justamente quando analisamos a participação democrática e consciente dos brasileiros nos âmbitos cultural, econômico, educativo, político, etc., que têm por critério garantir avanços aos indivíduos por meio de participação na sociedade de modo amplo e irrestrito.
Nota-se que a medida avaliativa apontada certamente deve caminhar em consonância com vivências humanas de outras partes do mundo que tenham contribuído com o avanço humano de forma cada vez mais efetiva. Diante dessa conjuntura, cabe explicar que meu interesse não se constitui no aprofundamento de determinado foco emblemático que contemple apenas uma vertente problemática de cunho nacional a que estão submetidas pessoas vítimas de processos históricos, nem ao menos fazer levantamentos de problemas de país a país diante do viés que contemple os estudos relacionados ao cômputo das relações internacionais. Antes, minha prioridade é problematizar as consequências referentes às violências físicas, emocionais e morais cometidas contra a pessoa humana e suas mazelas presentes na nossa sociedade. Além disso, perguntar ainda: quais avanços, retrocessos, ou seja, o que de fato precisamos melhorar para possibilitar o alargamento de direitos a mais e mais pessoas a ponto de criarmos uma memória cada vez mais significativa para as próximas gerações?
Nesse sentido, vale considerar que no Brasil é importante sempre considerar os estudos da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), que desde há muito tempo se configuram como referência no mundo acadêmico. As contribuições da autora são atuais e devem ser cada vez mais recorrentes nas salas de aula, universidades, faculdades, no âmbito da sociedade de modo geral. Vale destacar, aqui, que Arendt, no livro A Condição Humana, de 1958, nos coloca diante da conscientização de que devemos defender o mínimo de condição humana a todos os seres humanos. Essa tratativa, concebida primeiramente no exterior, deve ser elemento básico na contemporaneidade para pensar as condições básicas dos seres humanos no Brasil. Nessa órbita, o que deve ficar claro é que o acesso ao básico deve ser uma premissa que atenda aos interesses primordialmente dos silenciados e excluídos de uma participação democrática em nossa sociedade.
Outra necessidade que se tornou cada vez mais urgente na agenda de compromissos internacionais é que no século 21 é preciso dar ênfase ao acesso à cultura da liberdade a todas as pessoas. Porque a liberdade se configura numa posição de banimento de qualquer forma de autoritarismo que coloque o ser humano em posição de degradação, humilhação ou sofrimento humano. Dessa forma, o que devemos valorizar enquanto seres humanos é a participação democrática de homens e mulheres no seio da sociedade, em que as classes sociais possam ter seus anseios e suas formas de vivência visualizados e respeitados pela própria sociedade. Cabe, ainda, enfatizar que as representações simbólicas devem ser trazidas para a frente, porque elas estão fundamentadas na valorização das expressões culturais e humanas que envolvem uma situação e uma forma de expressar a vida dos seres humanos de modo amplo e irrestrito.
No encalço da História e da memória, compreende-se que a contribuição de Hannah Arendt é bastante significativa para todos nós, no passado, no presente e com projeção para o futuro, quando as próximas gerações deverão ser beneficiadas. As reflexões da escritora não devem ficar restritas aos debates e reflexões intelectuais apenas; antes, suas ideias devem ser trabalhadas e ampliadas para a esfera pública, oportunizando estudos nas escolas, nos colégios e em demais setores sociais de ensino e aprendizagem. Essa oportunidade deve possibilitar, portanto, problematizações e conscientização ante os efeitos devastadores do ódio, da guerra, da intolerância, do desrespeito à pessoa humana, que se têm conferido como problemas sérios em nossas sociedades mundiais. Nesse aspecto, não podemos perder de vista que a rememoração dos 48 anos da morte de Hannah Arendt, que também ocorre neste ano, deve estar sintonizada com os emblemas e desdobramentos que envolvem a comemoração dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por outro lado, cabe salientarmos que o sentimento de liberdade consciente e a ênfase na promoção dos direitos humanos conduzem nossa percepção para o cotejamento do bem que a arte e a cultura nos promovem, esfacelando, portanto, o rigor e a obediência a tudo o que retrai o ser humano e o enclausura em atitudes em que a violência é enaltecida como meio de manter inalteradas e incompreendidas a cultura e a liberdade de expressão. Arendt, por meio de seus livros e vivência, tem nos conscientizado em relação a essa vertente. Vale, pois, refletirmos, por meio dos processos de desenvolvimento dos direitos humanos em âmbitos nacional e internacional, sobre o acesso à arte, à cultura e à educação, que nos humanizam e nos tornam construtores de memórias que promovam a importância dos direitos humanos. É necessário observar que, no início do século 21, a valorização de tudo o que possa elevar nosso espírito de humanidade é também possibilitada pelos benefícios da arte, que nos leva à reflexão e à vivência e aplicabilidade da liberdade na esfera pública.
Pensar na importância e na validade da Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948 é, também, possibilitar a consideração que devemos manter por pessoas que sobreviveram a realidades que ultrapassaram sua oportunidade de simplesmente existir. Não podemos perder de vista a pessoa do químico Primo Levi (1919-1987), que por meio de sua experiência diante do massacre de pessoas no campo de concentração de Auschwitz, durante a 2.ª Guerra Mundial (1939-1945), nos coloca na defensiva de contestar qualquer tipo de violência ou ausência da democracia em quaisquer circunstância. Devemos enfatizar que temos um compromisso com a valorização da vida humana.
Rememorar e refletir acerca da Declaração Universal dos Direitos Humanos neste ano é enfatizar e fazer valer de forma democrática o direito de liberdade que tanto Hannah Arendt quanto Primo Levi nos enfatizaram. Além disso, é evidente que cabe-nos a consciência de defender o direito de existir e combater todo tipo de autoritarismo e violência que possam ferir o direito de viver de forma digna e com o básico.
Diante do tempo presente, que possamos pensar os direitos humanos enquanto promotores de benefícios à humanidade, desde a sua origem até os dias atuais, e que, por ora, ainda cabem a nós alguns desafios: o que estou fazendo para contribuir com a plausível promoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lançada em 10 de dezembro de 1948? Enquanto ser humano, qual memória estou ajudando a construir, consciente, portanto, de acontecimentos do passado em relação aos direitos da pessoa humana no presente e para o futuro?
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É MESTRE EM HISTÓRIA CULTURAL (UNICAMP)