Democracia é um sistema sofisticado de organização do poder político que superou as formas anteriores de exercício do poder baseadas na tradição, no patriarcalismo e na tirania. O cientista político australiano John Keane, nas páginas iniciais do seu livro intitulado Vida e Morte da Democracia, afirma que “a democracia é um método superior de governo”, ancorado num conjunto complexo de instituições e práticas: Constituições escritas, Judiciário e leis independentes, eleições periódicas, mandatos temporários, partidos políticos, liberdade de imprensa, voto secreto e até o controle do temperamento pelo uso de linguagem educada. Ela é avessa ao personalismo e à arbitrariedade que caracterizam, por exemplo, as ditaduras.
Entre os atributos dos regimes democráticos, há um que não aparece em primeiro plano por não possuir a materialidade das instituições e dos procedimentos, mas que é vital para a sua fluidez e vitalidade. Trata-se da confiança, entendida como sentimento positivo em relação a pessoas e ao bom funcionamento das instituições que operam o sistema político. Na sua ausência ou déficit, as democracias se deterioram, perdem substância e atração.
Não à toa, os países caracterizados como democracias sólidas são também os que apresentam maior índice de confiabilidade nas relações interpessoais e em relação ao funcionamento dos governos e das instituições, conforme atestado pelo World Happiness Report de 2023. Nesses países, há um pressuposto tácito de que os governos são responsáveis e transparentes, as instituições funcionam a contento e em benefício dos cidadãos e as pessoas são conscientes do seu pertencimento a uma comunidade em que convivem com seus semelhantes à base do respeito e da confiança mútua, apesar das diferenças pessoais e políticas.
Relação de confiança entre as pessoas e para com governos e instituições não emerge espontaneamente. Surge de situações históricas bem específicas: sensação de bem-estar social e econômico, transparência e responsabilidade dos governantes, estabilidade jurídica e institucional, vigilância da sociedade civil no controle dos agentes públicos e do poder do Estado.
À luz desses dados, a situação do Brasil chega a ser angustiante. A sociedade brasileira exibe alto nível de polarização política manifestada em intolerância e repulsa aos adversários. A segurança pública é preocupação prioritária dos cidadãos às voltas com medos e violência sob diversas modalidades. A desconfiança em relação às instituições de Estado e aos que as comandam beira o paroxismo. Resultado de pesquisa de opinião do instituto PoderData de dezembro de 2024, na esteira de pesquisas de outras instituições, revela um dado alarmante que exige reflexão profunda da sociedade.
Segundo o instituto, 45% dos entrevistados consideram o trabalho do Senado ruim ou péssimo, ante 16% de bom ou ótimo; 48% consideram o trabalho da Câmara ruim ou péssimo, ante 9% que o consideram bom ou ótimo; o mais impactante, no entanto, diz respeito ao Supremo Tribunal Federal (STF): 43% consideram o seu trabalho ruim ou péssimo, ante 12% que o consideram bom ou ótimo. A Corte Suprema do País, que deveria ser o último bastião de confiabilidade da sociedade, é vista com desconfiança. Neste ponto, os dados do instituto demonstram que não há diferença significativa entre os eleitores de Lula e Jair Bolsonaro.
Ministros do STF se blindam afirmando que o trabalho da Corte não se pode pautar por pesquisas de opinião. Sim, é verdade, mas isso significa também fechar os olhos aos problemas gritantes que dela emanam por alguns de seus integrantes: vaidade, exibicionismo, descomedimento, corporativismo e ativismo compulsivo.
Como pode uma sociedade funcionar de maneira saudável em meio a essas sensações constrangedoras? Existe luz no fim do túnel?
O historiador e cientista político francês Pierre Rosanvallon aponta um caminho. Em artigo intitulado A democracia no século 21, publicado na revista Nueva Sociedad, de julho de 2018, afirma que é preciso transitar da democracia de autorização (eleições que conferem mandatos) para a democracia de exercício, em que os cidadãos são mais participativos e exigem dos governantes responsabilidade, franqueza e integridade “de modo a fundar uma democracia de confiança. Confiança entendida como uma dessas instituições invisíveis cuja vitalidade teve importância na época da personalização das democracias”.
Trata-se de um desafio gigantesco para uma sociedade que, cotidianamente, observa abusos de parte de suas lideranças políticas e agentes do Estado aferrados a privilégios, desrespeitando a liturgia do cargo, tomando partido quando o dever impõe a imparcialidade, ou olhando para a próxima eleição como horizonte estratégico. A persistência desta situação resulta em indiferença e alienação para setores significativos da sociedade, visíveis, por exemplo, no crescimento do número de abstenções, votos brancos e nulos em eleições, ou alimenta populismos de direita e esquerda com viés messiânico que, no fim, desidratam a vida democrática.