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Opinião|Democracia e concentração de poderes: uma reflexão sobre o caso Moraes

A concentração de papéis e a informalidade interinstitucional revelada neste caso não são compatíveis com o que se conhece por ritos democráticos

Por André Coura

A troca de mensagens entre o gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (Aeed), do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ganhou grande repercussão no cenário jurídico-político recentemente. Elas davam conta de um suposto propósito de determinar a produção de material informativo que seria utilizado em investigações em curso no STF.

Alguns pontos merecem reflexão nesse debate. No caso de um ministro do STF que exerça também a presidência do TSE – caso de Moraes à época em que as mensagens foram trocadas –, há uma indiscutível sobreposição de poderes, por força constitucional e legal, decorrente das funções acumuladas. Esse acúmulo se desdobra em dois grandes contextos.

O primeiro é que, como presidente do “inquérito das fake news”, Moraes tem a prerrogativa de atuar como instrutor das investigações e determinar a realização de diligências, conforme decidido pelo próprio STF ao legitimar, por 10 votos a 1, a validade e a conformidade do processo. Embora valide a situação institucionalmente – afinal, como disse Rui Barbosa, “o Supremo tem a prerrogativa de errar por último” –, o arranjo não está isento de críticas, especialmente porque reflete um contexto muito diferente do desenhado na Constituição federal de 1988 em matéria de investigação criminal. Em nossa Carta Magna, as funções de investigar, acusar, julgar e defender cabem a personagens distintos no devido processo legal.

Vale lembrar que no “inquérito das fake news” essa distinção de figuras praticamente não existe. Por mais de uma vez, inclusive, o Ministério Público Federal, responsável constitucional por investigar e acusar, requisitou o arquivamento da investigação.

Outro ponto que merece atenção é o fato de que, no caso da Justiça Eleitoral, diferentemente do que aconteceria com um juiz ou tribunal em processos criminais, a lei confere “poder de polícia” a essas entidades. Ou seja, elas têm a capacidade de agir de ofício, independentemente de provocação do Ministério Público ou de qualquer outra instituição sempre que se depararem com suspeitas ou provas de irregularidade em matéria eleitoral.

Em outras palavras, não haveria irregularidade caso a Aeed promovesse, por meio de um ofício, a reunião de informações ou a produção de dossiês e relatórios, especialmente se fundada em informações disponíveis em fontes públicas, e não protegidas por sigilo constitucional.

Por fim, há que considerar (e aqui talvez seja impossível dissociar os pontos) o conteúdo e o objetivo das mensagens apresentadas até aqui. Formalmente, não haveria qualquer irregularidade no fato de o presidente do TSE, no exercício do seu legal poder de polícia, determinar a um subordinado seu, naquele tribunal, a coleta de informações acerca de irregularidades durante o processo eleitoral. Paralelamente, também não há desvio de função no fato de que essas informações aportassem no âmbito de um inquérito cujo objeto igualmente compreende a disseminação de informações falsas.

O desconforto começa quando se considera que tanto o ministro presidente da investigação no STF quanto o que preside a Corte Eleitoral são a mesma pessoa. E digo “desconforto” porque, a priori, não se pode argumentar que é uma ilegalidade flagrante. De fato, como chegou a dizer o próprio Moraes, seria “esquizofrênico” oficiar a si próprio. Mas também é verdade que essa concentração de papéis e a informalidade interinstitucional revelada não são compatíveis com o que se conhece por ritos democráticos.

Toda a estrutura das democracias constitucionais, incluindo a do Brasil, se fundamenta na noção de freios e contrapesos. Nelas, evita-se a concentração extrema de poderes sob as mesmas mãos. Por isso, a situação toda pode até não ser ilícita – como de fato parece não ser, com o que se sabe até aqui –, mas é, no mínimo, democraticamente incômoda e, de alguma forma, desidrata a autoridade do STF ao lançar alguma penumbra à atuação de Moraes à frente daquela investigação. A prática de qualquer magistrado deve ser sempre isenta e republicana. Esse é o desafio.

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