No artigo de março (7/3, A2) suscitei, para alguns até com exagero, caber a renúncia de Dilma Rousseff, já então destituída de legitimidade para governar, e a dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, sujeitos a investigação a pedido do Ministério Público.
Dilma, de março para cá, só perdeu popularidade, da pouca que já tinha. Cada vez mais sua campanha eleitoral se mostra alimentada por dinheiro provindo de fontes ilícitas; apontou-se a sua responsabilidade pelas “pedaladas fiscais” que maquiaram o superávit fiscal e ludibriaram o eleitor com a falsa promessa de baixa inflação e crescimento econômico; e tornou-se mais patente sua omissão quanto ao descalabro da corrupção na Petrobrás e na Eletrobrás.
Há pedregulhos por todo lado. O presidente da Câmara, diante da mera menção de ter recebido cerca de US$ 5 milhões no petrolão, resolveu salvar-se do incêndio pondo fogo no circo. Adepto da teoria da equivalência das condições, elegeu, como causa principal da imputação de corrupção que lhe é feita, uma circunstância sem a qual o fato não teria ocorrido: a prática da propina na Petrobrás. Tem razão, pois não teria sido, como diz o delator, aquinhoado com nenhuma quantia se o governo fosse honesto. Em manobra diversionista, dirige, então, artilharia a quem permitiu a corrupção na estatal e faz ressuscitar pedidos de impeachment e CPIs do BNDES e dos fundos de pensão, prometendo dias difíceis ao governo.
Renan Calheiros, também encrencado com investigações, passou a apoiar o presidente da Câmara e a criticar o ajuste fiscal, a seu ver uma firula.
O quadro não pode ser mais assustador. Os chefes dos Poderes de Estado se liquefazem. Os presidentes da Câmara e do Senado valem-se dos órgãos que dirigem para se defender, aumentando ainda mais a instabilidade das instituições.
Lula, que se notabilizara por ser feito de Teflon, agora está sob investigação também, suspeito de realizar tráfico de influência em favor de empreiteira pelo mundo afora, revelando-se um lobista em jatinho de construtora sempre na companhia de diretor da empresa, réu no processo da Lava Jato. São possíveis novas revelações sobre Lula. O PT e Collor se assemelham, com a diferença de agora ser pior: não há apenas corrupção, em quantias maiores, há risco à democracia graças às campanhas eleitorais regadas a dinheiro sujo e à formação de maiorias a peso de ouro.
O pavor de Lula, bastante significativo, o levou a querer conversar com FHC para impedir o impeachment, como se a oposição, cavalheiresca e ingenuamente, devesse ignorar os delitos cometidos em nome da governabilidade, quando esta, na verdade, só existirá se os fatos forem apurados e os envolvidos, punidos política e criminalmente, obedecido o devido processo legal. Pressuposto essencial, portanto, para a reconstrução institucional reside no aspecto positivo da responsabilização dos fautores dos escândalos, como bem reclama a sociedade.
Mas há pergunta essencial: como sair da crise no presidencialismo no qual vigora a irresponsabilidade dos parlamentares por quatro anos, havendo apenas a estreita porta do impeachment em face de infrações praticadas pelo presidente?
No atual sistema, a Câmara pode fazer o que lhe convier: aprovar ou não projetos conforme bem entender, sem risco de qualquer consequência. Por seu lado, a presidente pode mentir, falsear dados contábeis, gastar além da conta, dirigir irresponsavelmente a economia, levando à inflação e ao desemprego, sem sanção política que não o longo processo de impeachment.
O quadro de hoje demonstra claramente ser preciso instaurar-se regime de responsabilidade política, inexistente no presidencialismo. No parlamentarismo, ao contrário, tal como construído no projeto da Constituinte, há conjugação entre responsabilidade e estabilidade graças aos pesos e contrapesos entre os Poderes. Mas como instaurar o parlamentarismo com Dilma, Cunha e Renan?
Dilma pode ser processada criminalmente pelas pedaladas, conforme petição que redigi aos partidos de oposição, ora nas mãos do procurador-geral da República. Cabe, também, impeachment, pelas mesmas razões. Se denunciados Cunha e Renan no processo da Lava Jato, como se noticia, seu afastamento deve ser consequência natural para salvaguarda das instituições que presidem.
Então, com a Presidência caindo no colo de Michel Temer, é hora de um grande acordo, nos planos econômico e político, para redução da máquina estatal e instauração do parlamentarismo, regime da responsabilidade com prazo incerto, pois tanto o chefe do governo, o primeiro-ministro e o ministério podem ser destituídos por moção de censura como os deputados podem ver dissolvida a Câmara e convocadas novas eleições. O presidente, eleito diretamente, resta acima das crises para garantir a estabilidade institucional.
Após os acontecimentos recentes, deve-se alterar o sistema político para eliminar a prática gerada pelo presidencialismo de cooptar apoio congressual por meio de dinheiro, de emendas parlamentares ou da distribuição de cargos.
É necessário, também, acabar com a camisa de força própria do presidencialismo, cujas crises são de complicada resolução. No parlamentarismo, atua-se com base na confiança, dando a maioria dos deputados apoio ao governo do seu partido sem recompensas estranhas à fidelidade partidária. Governo e Câmara dos Deputados se irmanam. Crise de governabilidade é resolvida rapidamente por meio de moção de censura.
Essas elucubrações sobre mudanças não apenas de pessoas, mas do sistema, refletem a busca angustiosa de luz em meio à desesperança. A população indignada irá às ruas em massa contra a corrupção no domingo 16 de agosto, clamando por justiça, mas também por desprendimento e bom senso para salvar o País do caos. A solução aventada não é fácil, mas deixa uma réstia de esperança.
*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular senior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça