Opinião | Do Castelo de Chazelet ao Rio Tocantins

As tragédias recentes revelam que a atualização e a conserva da nossa infraestrutura rodoviária precisam de mais atenção, e imediata

Por Clovis Luciano Teixeira

O ano era 1867. O jardineiro francês Joseph Monier, cansado de ver seus vasos e jardineiras feitos de argila, ou de argamassa de cimento e areia, danificados devido à baixa resistência desses materiais quando submetidos a esforços de tração, teve a ideia de reforçá-los, inserindo uma malha de arame no meio da argamassa durante a fabricação. Monier patenteou sua invenção e a exibiu na Exposição Universal de Paris em 1867. Assim nasceu o concreto armado (béton armé). O sucesso dessa técnica foi tal que Monier se aventurou no ramo da construção civil e, em 1875, construiu a primeira ponte em concreto armado do mundo, com 13,8 metros de vão livre. E, decorridos quase 150 anos, essa ponte ainda serve para atravessar o fosso do Castelo de Chazelet, em Indre, na França, famoso por ter ambientado Le Docteur Mystérieux e La Fille du Marquis, novelas do francês Alexandre Dumas.

Os romanos já utilizavam o concreto (opus caementicium), mistura de cal, água e pozolana – material silicoso de origem piroclástica, encontrado na região de Pozzuoli, no sul da Itália. O exemplo mais icônico do uso do concreto pelos romanos é a imponente cúpula de 43 metros do Panteão, que, decorridos quase dois milênios, ainda deslumbra turistas no centro histórico de Roma. Depois disso o concreto praticamente caiu em desuso diante da dificuldade da obtenção de cinzas vulcânicas, e somente voltou a ter aplicação sistemática a partir de 1824, na Inglaterra, com o desenvolvimento do cimento Portland – pó muito fino obtido pela calcinação de calcário e argila a 1.500 graus, seguida de moagem. Com o invento de Monier, o emprego do concreto armado migrou dos vasos e canteiros para outras aplicações, e hoje é o material mais utilizado em construções de todos os tipos, em todo o planeta, respondendo assaz por quase 8% das emissões globais de CO2.

Depois de toda essa história do béton armé, assistimos no Brasil à tragédia de 14 mortes provocadas pelo desabamento da ponte JK, construída em concreto armado com vão central em concreto protendido, entre 1959 e 1961. Essa ponte atravessava o Rio Tocantins, na BR-226 entre Tocantins e Maranhão, parte da Rodovia Belém-Brasília. Outro acerbo desastre já havia ocorrido em setembro e outubro de 2022, quando as pontes em concreto armado sobre os Rios Curuçá e Autaz Mirim, na BR-319/AM, desabaram matando quatro pessoas.

Essas catástrofes, evitáveis, só ocorreram pelo descuido que temos observado com a falta de conservação e atualização da nossa infraestrutura de transportes. A pesquisa CNT de Rodovias 2024 classificou o estado de conservação das rodovias públicas nacionais como: 7,7% péssimas; 25,9% ruins; e 43,7% regulares. Boas e ótimas foram apenas 22,7%. Outro destaque foi a identificação de 2.446 pontos críticos, que caracterizam situações de riscos à segurança dos usuários.

Em mais uma pesquisa – esta publicada recentemente pelo CenergiaLab, da Coppe/UFRJ, em parceria com o Instituto Clima e Sociedade – revelou que a precariedade das estradas brasileiras resulta em consumo adicional de até 1,43 bilhão de litros de óleo diesel por ano. Além disso – e da emissão de mais gases de efeito estufa –, temos um aumento do desgaste de pneus e sistemas mecânicos, gerando mais ônus para manutenção dos veículos, que impactam não só no bolso de seus proprietários, mas no de toda a sociedade, aumentando o preço do frete e influenciando o valor final dos produtos.

Nossa economia, via tributos, gera recursos suficientes para cuidar das rodovias que dominam a cena do transporte de cargas e passageiros no País. Mas as prioridades orçamentárias têm de ser revistas para estancar o escoamento dos bilhões que são direcionados para emendas parlamentares não prioritárias, salários acima do teto legal, vantagens monetárias imorais, estatais improdutivas, viagens, seminários e muitos outros privilégios inaceitáveis que sugam os recursos que deveriam ser utilizados para evitar essas tragédias.

É inadmissível que a correção dos danos e manifestações patológicas que causam a descaracterização de elementos e/ou sistemas integrantes das estruturas rodoviárias – em relação ao projeto – venha sendo sistematicamente postergada. É inaceitável que a conserva de nosso sistema rodoviário venha sendo preterida por dispêndios decorrentes dos arranjos da “feira livre” de distribuição de cargos e outras vantagens, repartidas para acomodar interesses de diferentes colorações partidárias.

As tragédias recentes revelam que a atualização e a conserva da nossa infraestrutura rodoviária, elementos-chave para a segurança e o desenvolvimento do País, precisam de mais atenção, e imediata, para evitar novos colapsos e salvar vidas. Basta seguir o que determinam as competentes normas técnicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), classificando as pontes e implementando as conservas e atualizações nelas previstas. É imprescindível reforçar as estruturas mais antigas para evitar mais tragédias. Ao fim e ao cabo, o legado do jardineiro Joseph Monier – o béton armé – tem de ser conservado, e não marcado pelo descaso.

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ENGENHEIRO, É CONSULTOR EM PROJETOS DE INFRAESTRUTURA

Opinião por Clovis Luciano Teixeira

Engenheiro, é consultor em projetos de infraestrutura