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Opinião|Doenças raras: uma conta que não bate

Não é aceitável que a maior parte de uma população de 13 milhões de brasileiros sofra com a dificuldade de diagnóstico e de acesso ao arsenal terapêutico adequado

Por Flávia Gameleira

O último dia de fevereiro foi eleito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a data para dar visibilidade às doenças raras. Por definição, é rara aquela enfermidade que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. O órgão estima que existam 8 mil diferentes tipos de doenças raras em todo o mundo e 95% delas não têm cura.

No Brasil, 13 milhões de pessoas convivem com alguma doença dessa classificação, segundo o Ministério da Saúde, o que comprova que essa população não é tão rara como pensamos. Eles existem e representam uma fatia significativa da sociedade.

São milhares de raros à espera de profissionais instruídos e capacitados a diagnosticá-los corretamente. Mas a ausência de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) específicos no sistema de assistência à saúde faz com que essa espera se torne cada vez mais prolongada. Esses documentos precisam existir de forma exclusiva para orientar médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e demais profissionais de saúde sobre como realizar o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação dos pacientes, bem como a assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, apenas 36 doenças raras contam com PCDTs publicados.

Isso faz com que a jornada dos pacientes se torne invariavelmente muito árdua. Em média, eles levam cinco anos para ter um diagnóstico fechado, dificultado pela gama de sintomas, que quase sempre é muito ampla, e que podem ser comuns a diferentes tipos de doenças, deixando o quadro nebuloso, inconclusivo.

O cenário piora (e muito) nas regiões mais remotas do Brasil. E a estarrecedora crise com o povo Yanomami escancara esse problema. O território brasileiro é de nível continental e não é nada incomum que comunidades inteiras, com milhares de pessoas, estejam absurdamente afastadas dos grandes centros e das principais capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde está totalmente concentrada a demanda e, principalmente, o acesso a serviços do sistema de saúde.

Nessas localidades, que muitas vezes nem são tão longínquas assim, as populações geralmente são atendidas pelos chamados agentes de saúde, profissionais que compõem a equipe multiprofissional nos serviços de atenção básica e desenvolvem ações de prevenção de doenças, tendo como foco atividades educativas, em domicílios e coletividades. Mas, apesar dos esforços incansáveis destes grupos para promover a saúde das pessoas, é inegável e evidente que a cadeia toda de profissionais não está munida de informações nem de qualificação suficientes para identificar possíveis casos de doenças raras.

A soma da falta de PCDTs com a dificuldade de acesso às ferramentas de saúde e até mesmo o desconhecimento nos ajuda a concluir os motivos pelos quais a maior parte dessas enfermidades e, consequentemente, seus pacientes são negligenciados.

Tomo como exemplo ilustrativo dessa narrativa a região onde atuo – cuja possível identificação reservo o direito de preservar –, onde habitam cerca de 1.100 indivíduos. Foram diagnosticados nos últimos sete anos quatro casos de mucopolissacaridose (MPS), um grupo de doenças genéticas raras que envolvem a falta ou quantidades insuficientes de determinadas enzimas essenciais para o bom funcionamento do organismo. O dado, que é alarmante, leva ao questionamento: a doença é rara ou subdiagnosticada?

Não se pode ignorar a existência de fatores agravantes, como as relações consanguíneas, isto é, quando membros de uma mesma família se reproduzem, que acabam aumentando as chances da ocorrência de doenças de origem genética, como são a MPS e a maioria das raras.

Levando em conta todo este cenário que desencadeia na falta de assistência, é fundamental que o Estado, os sistemas de saúde, os profissionais da área e suas respectivas entidades de classe, as associações de pacientes, a indústria e todos os atores envolvidos nesta questão se debrucem sobre os fatos para desenvolver estratégias de ação eficientes para corrigir essa imensa e abismal falha.

Não é aceitável que a maior parte de uma população de 13 milhões de brasileiros sofra com a dificuldade de diagnóstico e de acesso ao arsenal terapêutico adequado que garante a qualidade de vida e até mesmo a sobrevivência para quem tem uma doença rara.

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É MÉDICA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E ATUA EM REGIÕES REMOTAS DO BRASIL

Opinião por Flávia Gameleira