Era uma vez na Rússia. O ano era 1865. O romancista Fiodor Dostoievski, autor de clássicos da literatura universal como Os Irmãos Karamazov e Crime e Castigo, então afogado em dívidas, viu-se compelido a buscar alternativas que lhe garantissem alguns rublos. Estoico diante do infortúnio e impulsionado por uma inocência que beirava a imprudência, ele fez uma má escolha vendendo sua alma ao diabo, ao firmar contrato com um editor para a publicação de sua obra completa. Nesse contrato, obducta nas entrelinhas, havia uma cláusula estabelecendo que caso ele não apresentasse um novo romance até determinada data o editor teria o direito de explorar livremente todos os seus escritos pelos próximos nove anos, sem nenhuma remuneração.
Acossado pelo prazo e pelas dívidas, Dostoievski se desdobra e consegue entregar, antes do prazo estipulado, O Jogador, livro de 160 páginas, atendendo assim ao exigido no contrato. A narrativa dessa obra literária gira em torno de Alexei, um jovem que se encontra a serviço de uma família aristocrática da Rússia durante sua estadia na fictícia cidade alemã de Roletemburgo, antro de cassinos e outros ambientes dedicados a jogos de azar. A trama revela a intrincada teia de relações ambíguas entre os personagens e o fascínio onírico e destrutivo do jogo, em que o dinheiro se transforma no eixo de todas as interações humanas. À medida que o enredo avança, a compulsão dos personagens pelo jogo se torna mais intensa, levando-os a comportamentos irracionais e impetuosos. Dostoievski, que em outros momentos de sua existência também se viu preso ao vício do jogo, expõe com maestria os perigos dessa dependência, ilustrando o círculo vicioso de esperança e desespero que consome a mente do jogador, sempre na crença de que a próxima aposta será a sua salvação.
Hoje, transcorrido mais de um século e meio da publicação de O Jogador, assistimos perplexos a essa obra de Dostoievski ecoar, com inquietante ressonância, na contemporaneidade, e ao Brasil se transformar em uma versão digital da Roletemburgo que ambientou esse romance. Uma Roletemburgo tropical, com população crescente de viciados patológicos em apostas eletrônicas. A digitalização dos jogos de azar, aliada aos smartphones, permite que as pessoas carreguem uma máquina caça-níqueis em seus bolsos, disponível a qualquer momento do dia e da noite.
Embora os riscos associados a essa nova forma de vício ainda não sejam plenamente compreendidos, já se delineiam indícios alarmantes de um mal mais profundo, incentivado pela influência perversa de conglomerados econômicos et caterva, que desenvolvem produtos projetados para escravizar os indivíduos, transformando-os em dependentes. Beneficiários do Bolsa Família, programa federal destinado aos mais necessitados, gastaram em agosto passado mais de R$ 3 bilhões com bets, somente em apostas via Pix, segundo o Banco Central. Quase R$ 24 bilhões – 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB) – é o valor projetado de perdas que os brasileiros terão com apostas online a cada ano, segundo estudo macroeconômico realizado pelo banco Itaú.
O espectro da economia do vício vem permeando a sociedade, onde cigarros eletrônicos (vapes), bebidas alcoólicas, alimentos ultraprocessados e apostas online se entrelaçam em uma teia de dependência física e psicológica. As campanhas publicitárias, dirigidas para gerar compulsão, acarretam danos incalculáveis à saúde pública, à estrutura familiar e ao bem-estar emocional, especialmente entre os mais jovens e os menos favorecidos. As desigualdades inerentes à arrecadação do jogo, frequentemente ignoradas, aprofundam o abismo social, beneficiando apenas a sanha arrecadatória pública e os magnatas da indústria dos jogos online, às custas dos mais vulneráveis.
As estratégias de persuasão adotadas pelas plataformas de apostas, apoiadas por influenciadores digitais e por ícones do esporte, refletem uma dinâmica semelhante àquela que outrora engendrou a proliferação do vício do tabaco. Diante do avanço avassalador e da complacência crescente em relação à indústria do vício, urge que nossos governantes e legisladores se inspirem nas outrora bem-sucedidas políticas de controle do tabaco do Brasil. Esse modelo, que conseguiu reduzir significativamente o número de fumantes, mesmo diante da resistência do lobby tabagista, nos oferece lições valiosas para adotar contra as bets.
Agora, voltando a Dostoievski, a História registra que ele não trabalhou sozinho. Acossado pelo prazo ele contratou a linda estenógrafa Anna Snítkina, então com apenas 20 anos, para auxiliá-lo na árdua tarefa. Juntos eles labutaram por 26 dias e conseguiram concluir O Jogador, originalmente intitulado Roletemburgo. E, ao fim e ao cabo, a linda manceba Anna Snítkina se tornou a senhora Dostoievskaia.
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ENGENHEIRO, É CONSULTOR EM PROJETOS DE INFRAESTRUTURA