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Opinião|É tempo de aprender a regular o ensino superior

Assistiremos aos desdobramentos de mais uma tentativa errática do MEC de regulação, que pode colocar em xeque a sustentabilidade econômica de IES, polos e cursos

Por Henrique Silveira

A cada iniciativa de regular o ensino a distância (EAD), o Ministério da Educação (MEC) reforça a máxima de Darcy Ribeiro de que “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Como um aluno que se recusa a estudar, o MEC reiteradamente ignora as garantias das Instituições de Ensino Superior (IES) e as balizas legais de sua atividade normativa e comete erros de criança, bagunçando o setor que deveria ajudar a organizar e convidando a disputas judiciais.

O novo exemplo é a Portaria MEC n.º 528/2024, editada na calada da noite de uma sexta-feira. Em um só ato, o MEC arroga a si prerrogativas que não lhe competem, além do que proíbe o ingresso de novos agentes no mercado EAD e a expansão da oferta de cursos e polos de todas as IES privadas que atuam no segmento até 10 de março de 2025, sem avaliar consequências. Regular o ensino não é tarefa fácil, mas, depois de 25 anos em recuperação, já era hora de aprender.

Vale começar do livrinho. A Constituição federal inaugurou um novo ambiente institucional para o ensino superior privado no Brasil, quebrando dois monopólios centrais que davam ao MEC o poder de definir o conteúdo a ser ensinado e o de estabelecer, com discricionariedade, regras para permitir o ingresso e permanência de IES no mercado. Essa norma tenta ressuscitar ambos.

Quanto ao primeiro, diferentemente do que prevê a regra nova, não cabe ao MEC definir sozinho o que seja a qualidade do ensino no Brasil. Na verdade, o artigo 206 da Constituição consagra a liberdade de ensinar a quem atua no setor (as IES), desde que observado um padrão de qualidade. E esse referencial qualitativo corresponde a diretrizes nacionais, cuja definição, segundo prevê a Lei n.º 9.131/1995, cabe ao Conselho Nacional de Educação (CNE) – órgão público, de representação plural.

Na realidade, não há apenas uma receita de qualidade no Brasil. Há várias. E o papel do MEC é organizar a avaliação das diferentes qualidades das IES e seus cursos, cujo resultado será um critério regulatório fundamental para o ingresso e para a permanência de qualquer IES ou curso no mercado, conforme prevê o artigo 209, II, da Constituição e a Lei n.º 10.861/2004, que criou o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Isso significa, portanto, que apenas se e quem não atender ao critério qualitativo mínimo em vigor é que não poderá oferecer educação, e não que o MEC pode, a seu gosto, impedir os empreendedores de o fazer até que ele reflita.

Já sobre o segundo ponto, vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF) caracteriza a atividade de ensino como um “serviço público social” (ADI n.º 1.923), pois o artigo 209 da Constituição admite a livre iniciativa do setor privado nesse mercado por direito próprio, logo, sem ter que se sujeitar a uma delegação pelo poder público a partir de licitação. Isso não quer dizer, claro, que não haja regras para atuar nesse mercado. Ao contrário: o próprio STF reconhece a importância de que o setor seja fortemente regulado, pois “nasce condicionado pelo interesse coletivo” (ADI n.º 3.330).

Portanto, não há dúvidas de que o ensino superior privado (e o EAD, em particular) pode e deve ser regulado, e nem de que o MEC deve criar essa regulação. Mas há regras e procedimentos.

Uma delas é a garantia de autonomia a alguns grupos de IES que preenchem os critérios qualitativos da legislação (universidades e centros universitários), os quais, segundo o artigo 53, I, da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), artigo 14 do Decreto n.º 9.057/2017 e artigo 40 do Decreto n.º 9.235/2017, podem criar cursos e ampliar vagas (e polos) por seus próprios atos, independentemente de autorização prévia do MEC, exceto em alguns casos. Essa regra, dentre tantas outras, foi rasgada pela Portaria 528, que ora comento, sem qualquer explicação. Fosse um aluno, o MEC estaria reprovado.

E isso porque parece não querer estudar suas funções. A Lei n.º 13.874/2019 impõe inclusive ao MEC o dever de realizar análise de impacto regulatório antes de adotar medidas que afetem o interesse geral de agentes econômicos, como a suspensão de ingresso no mercado e de ampliação da oferta de cursos e abertura de polos causada pela Portaria 528. Segundo o Decreto n.º 10.411/2020, que regulamenta o tema, é fundamental que o órgão leve em consideração seus objetivos, os impactos da medida que pretende adotar, seus custos, dentre outros. Há até um guia da União Federal sobre como fazer ditas análises. E nada disso foi mencionado no ato.

Parece que o MEC insiste em cabular aula sobre como construir uma regulação inteligente para o setor, muito embora não faltem declarações sobre a importância de construir uma agência reguladora para o setor – que, aliás, seria mais do que bem-vinda no atual contexto. Agora, assistiremos aos desdobramentos de mais uma tentativa errática de regular, que pode colocar em xeque a sustentabilidade econômica de IES, polos e cursos.

Um amigo que admiro sempre me diz que “educação não é palpite”. Regulação também não é. E já passou do tempo de o MEC aprender a regular o setor de ensino superior de forma responsável.

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ADVOGADO, É DOUTOR EM DIREITO ECONÔMICO E FINANCEIRO PELA FDUSP, MESTRE E BACHAREL EM DIREITO PELA UFSC E ESPECIALISTA EM DIREITO ECONÔMICO PELA FGV DE SÃO PAULO

Opinião por Henrique Silveira

Advogado, é doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Direito Econômico pela Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo