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Opinião|Em defesa das águas

Os últimos remanescentes que abastecem a Represa de Guarapiranga estão sendo dizimados por uma ocupação incessante e clandestina

Por José Renato Nalini

Ao contrário do que existia em 1554, ao aqui chegarem os jesuítas, São Paulo não tem hoje toda a água doce de que necessita. A crise de 2014 já evidenciou nossa vulnerabilidade nessa área. Culpa nossa. Canalizamos rios que serpenteavam pelas várzeas luxuriantes e piscosas de Piratininga. Sepultamos os milhares de cursos d’água para asfaltar vias públicas. Fizemos uma cidade para o automóvel. A água que existia minguou. Até porque a poluímos irremediavelmente.

Os últimos remanescentes que abastecem a Represa de Guarapiranga estão sendo dizimados por uma ocupação incessante, irregular e clandestina de áreas que não podem ser destinadas ao adensamento populacional. Derrubam-se os derradeiros exemplares do resíduo de Mata Atlântica e secam os veios. A água desse grande reservatório já está comprometida. Para torná-la o que deveria ser – inodora, insípida e incolor – emprega-se crescente quantidade de substâncias químicas. Existe prognóstico das consequências após longo período de consumo, principalmente para as crianças e futuras gerações?

O argumento do direito à moradia deve ser cotejado com o direito de hierarquia superior: o direito à vida. Exatamente o primeiro a ser explicitado no caput do artigo 5.º da Constituição da República.

São Paulo precisa ter juízo. Principalmente aqueles setores que dela extraem volume considerável de lucro. O que devolvem de fato, concretamente, para esta conurbação de 12 milhões de pessoas no perímetro municipal, que chega a 22 milhões nas áreas contíguas, que já estão se emendando com a Pauliceia?

É mais do que urgente um trabalho sério e consistente em monitorar e responder ao desflorestamento e em defesa das águas de proteção ambiental, sobretudo na Área de Preservação Permanente de Parelheiros, Marsilac e Grajaú. Milhões de pessoas vivem ali. Mas a água da Guarapiranga atende a um terço da população paulistana. Muito mais almas, portanto.

Existem opções antes que o pior aconteça. Por exemplo, adoção de nascentes. Assim como se adotam praças e jardins, empresas, bancos, clubes, associações podem adotar uma nascente. Cuidando dela, plantando ao redor. Fazendo inspeções periódicas, que podem ser com a utilização de drones. Mostrar ao sistema de invasão, cada vez mais sofisticado, que ainda existe quem se preocupa com o amanhã.

Criar bosques temáticos. Cada nação que possui representação consular em São Paulo poderia se encarregar de criar um bosque em homenagem à sua história, aos seus vultos, aos seus fatos marcantes. Seria uma fórmula viável e pouco dispendiosa de evidenciar a São Paulo a gratidão de quem para aqui veio e se radicou e de onde tira o seu sustento.

Igrejas também poderiam se encarregar de outros espaços. E as universidades, que são tantas na capital, assim como as faculdades isoladas. E institutos culturais, sindicatos, todos os agrupamentos de seres humanos que têm a água como componente essencial da continuidade da existência precisam estar conscientes do perigo que ameaça a todos os viventes.

O ideal seria tornar cada paulistano um guardião do seu ambiente. A destruição da cobertura vegetal é drástica e o poder público municipal faz sua parte, com a declaração de utilidade pública de 32 áreas a serem integradas ao verde local. Iniciativa corajosa do prefeito Ricardo Nunes, que é sensível às mudanças climáticas.

Uma educação ambiental de qualidade tornaria cada ser humano responsável pelo excessivo descarte que produz diuturnamente. Os resíduos sólidos representam quase 10% das emissões dos gases causadores do efeito estufa. A cidade gasta cerca de R$ 2 bilhões por ano, quantia que pesa sobre seu orçamento, com varrição e coleta de lixo. Embora 76% da cidade disponha de coleta seletiva, somente 3% do resíduo reciclável chega à reciclagem. O restante vai para aterros sanitários que ocupam áreas ambientalmente preserváveis, comprometendo ainda mais a qualidade de vida na megalópole.

Pessoas ditas esclarecidas, com pós-graduação e situação econômica invejável, contribuem com o desperdício. Não separam seu descarte, abominam a compostagem, não hesitam em sujar a cidade e respondem com o argumento de que já pagam tributos e, portanto, estão liberadas a praticar o esporte da imundície.

A situação é muito grave e já se pode falar em “emergência climática”, não mais em mera mudança. Proliferam os inimigos das árvores, que as consideram inimigas da fiação elétrica. Ignoram que ela deveria ser subterrânea, como acontece no mundo civilizado. O mundo precisa de 1 trilhão de novas árvores, o Brasil necessita de 1 bilhão e São Paulo, a nossa capital, sente falta de ao menos 1 milhão de espécies.

É surreal que ainda exista quem não acredite em mudança climática. Após um 2023 mais quente em 125 mil anos, precipitações pluviométricas das quais resultam mortes e prejuízos, o inverno europeu mais quente em 70 anos e março sem suas águas. Não atingimos a média de chuvas para abril e para este mês que ora finda.

A catástrofe gaúcha é mais do que um alerta para quem resiste a considerar a mudança climática a mais grave ameaça que a humanidade já enfrentou. Episódico excesso de águas lá, risco de nefasta escassez aqui.

O que mais você sugere para esta verdadeira legítima defesa das águas paulistanas?

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REITOR DA UNIREGISTRAL, DOCENTE DA PÓS-GRADUAÇÃO DA UNINOVE, É SECRETÁRIO-EXECUTIVO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS DE SÃO PAULO

Opinião por José Renato Nalini

Reitor da UniRegistral, docente da pós-graduação da Uninove, é secretário-executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo