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Opinião | Enganos e lacunas no debate sobre a Sabesp

No debate sobre a privatização, velhos ‘slogans’ sobre supostas vantagens da gestão privada que se mostraram enganosos mundo afora são repetidos acriticamente.

Por Rubens Naves

Com a aceleração das mudanças climáticas, o acesso à água torna-se fator cada vez mais decisivo para a sustentabilidade humana no planeta. No Brasil, esse desafio existencial se soma à missão histórica de universalização do saneamento básico.

Neste contexto, precisamos qualificar o debate público sobre água, saneamento e sustentabilidade socioambiental. E o projeto de privatização da nossa maior e melhor empresa do setor deve ser objeto de questionamentos à altura do que está em jogo para os paulistas e brasileiros.

Hoje, privatizar uma grande e bem-sucedida empresa de saneamento sob controle público é rumar na contramão do mundo. Passada a onda de privatizações iniciada nas últimas décadas do século 20, a tendência dominante atualmente é a de reinstituir e reforçar o controle público sobre a gestão dos recursos hídricos e os serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto.

No debate sobre a privatização da Sabesp, entretanto, velhos slogans sobre supostas vantagens da gestão privada de serviços públicos de natureza monopolista (por não ser factível a replicação da infraestrutura e a mobilização de recursos necessários à sua prestação) que se mostraram enganosos mundo afora são repetidos acriticamente.

Não há debate sério e bem informado sem o reconhecimento do fato de que privatização não é garantia de ganhos de competitividade, eficiência, investimentos continuados, qualidade e sustentabilidade.

Competitividade em risco. No saneamento básico, uma vez privatizada, a prestadora de serviços não tem competidores e, pela natureza da empresa capitalista, a motivação essencial é a maximização do lucro. Especialmente no caso de monopólios, o aumento do lucro é mais facilmente obtido pela redução de folha salarial, de custos e de investimentos do que com ganhos de eficiência provenientes de pesquisa e inovação ou excelência de gestão corporativa e ambiental. Essa constatação pode ser feita pela análise de casos de privatização do saneamento, como a na Inglaterra, e de experiências brasileiras com grandes empresas de serviços públicos monopolistas, como a da fornecedora de energia Enel, em São Paulo.

Os defensores da privatização respondem a essas evidências dizendo que contratos de concessão de serviços bem-feitos e bem monitorados resolveriam o problema. Mas como a adequação contratual e a cobrança por resultados podem e devem ser igualmente aplicadas a empresas sob controle público, essa não é uma vantagem da privatização.

A aplicação automática para o saneamento da ideia genérica de que a competitividade de mercado obriga as empresas privadas à constante busca de eficiência, produtividade, inovação e qualidade é, portanto, expressão de crença ideológica ou defesa de interesses particulares.

A experiência internacional evidencia que, em termos de qualidade de serviços, trajetória tarifária, subsídio para populações de baixa renda, responsabilidade socioambiental, pesquisa e inovação, dificilmente um prestador privado terá resultados tão bons quanto os obtidos pela Sabesp ao longo dos seus 50 anos de existência como empresa estatal. E esse ótimo desempenho é mantido pelo atual modelo de empresa de economia mista, cujo maior beneficiário no recebimento de dividendos financeiros é o poder público estadual e, portanto, também nesse sentido, a sociedade paulista.

Como assinalou o engenheiro Paulo Massato, ex-diretor da Sabesp, em encontro da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), a empresa tem hoje 160 mil fornecedores cadastrados. Com a privatização, essa rede de fomento à competitividade, qualificação profissional, emprego, renda e inovação tende a ser desfeita ou substancialmente reduzida. Isso porque grandes prestadores privatizados de serviços públicos, norteados pela busca da redução de custos e maximização de lucro, tendem a substituir amplas redes de fornecedores por um pequeno grupo de empresas, frequentemente ligadas à própria prestadora.

Demonização da política. Outra equivalência falaciosa é da política à má gestão de serviços públicos. Ao promover uma visão mercadista, essa ideia favorece a eliminação ou o enfraquecimento de controle público sobre a definição dos rumos da sociedade, revelando-se essencialmente antidemocrática.

A natureza mista do atual desenho institucional da Sabesp tem permitido à empresa atuar num equilíbrio saudável entre a busca da eficiência lucrativa e a necessidade política legítima e democrática de dar respostas eficazes às necessidades da população.

Essa dupla aptidão permitiu à Sabesp, por exemplo, solucionar rapidamente a crise hídrica de 2014. Combinando vocação pública, vontade política, excelência técnica, capacidade operacional e articulação entre várias instâncias do poder público, em alguns meses a empresa superou uma crise aguda de escassez hídrica, provocada por uma redução recorde de chuvas, que poderia ter-se arrastado anos a fio.

Uma Sabesp privatizada perderá vocação e capacidade para dar respostas tão rápidas e eficazes a crises socioambientais como aquela – eventos cada vez mais prováveis em tempos de mudanças climáticas.

O desafio da regulação. Independentemente da discussão sobre privatização, o atual contexto de mudanças climáticas globais e esforço para universalização do saneamento no Brasil requer a qualificação do debate sobre normas, mecanismos e órgãos de regulação.

Lideranças responsáveis devem apresentar planos claros e específicos de aperfeiçoamento do conjunto de fatores e atores – editais, contratos, agências reguladoras etc. – que garantam a atendimento do interesse público e reduzam riscos de repetição de experiências malogradas.

O atual projeto de privatização da Sabesp tem sido tocado de maneira no mínimo questionável quanto à sua constitucionalidade. E a judicialização da Lei Estadual 17.853/2023, que autoriza a alienação das ações da Sabesp pelo governador, introduz insegurança jurídica para a continuidade do processo.

Se, apesar disso, a privatização se efetivar, o que exatamente será feito no tocante à regulação (em São Paulo, a cargo da Arsesp) para garantir que a troca de um modelo bem-sucedido e reconhecido pela população por outro, que se encontra em declínio mundo afora, não seja um retrocesso histórico?

Assuntos sérios como saneamento básico requerem de todos os envolvidos no setor e no debate – especialmente dos gestores públicos que propõem mudanças de grande potencial de impacto – mais responsabilidade, consistência e transparência do que, no caso da Sabesp, vem sendo demonstrado.

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ADVOGADO, AUTOR DE SANEAMENTO PARA TODOS (ED. PALAVRA LIVRE) E ÁGUA, CRISE E CONFLITO EM SÃO PAULO (ED. VIA IMPRESSA), FOI PROFESSOR DE TEORIA GERAL DO ESTADO DA PUC-SP

Opinião por Rubens Naves

Advogado, autor de ‘Saneamento para Todos’ (ed. Palavra Livre) e ‘Água, Crise e Conflito em São Paulo’ (ed. Via Impressa), foi professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP