Enquanto estudantes impunham à Universidade de São Paulo (USP) uma paralisação em torno de temas que oscilavam entre a reposição de professores e aumento das bolsas de permanência (medidas já em adiantada implementação pela reitoria) a pleitos abilolados, uma grave ameaça real pouco era percebida.
Com a importante reforma tributária tramitando no Congresso Nacional, a autonomia financeira e administrativa das universidades paulistas correu sério risco. Essa autonomia, assegurada desde os anos 80, é grande responsável pela excelência da USP, da Unicamp e da Unesp. Possibilitou que as três estivessem sempre na liderança dos rankings de melhores universidades do Brasil e da América Latina. Ela garante que uma parcela dos tributos estaduais seja destinada, obrigatória e automaticamente, para as três instituições, evitando que a cada ano se tenha de negociar orçamento com o governo estadual e a Assembleia.
Com recursos assegurados (ainda que variando em função das oscilações na arrecadação), as universidades têm previsibilidade, liberdade acadêmica e podem se comprometer com recursos para projetos de pesquisa de mais longo prazo. Isso evita que, a cada ano, tenham de pelejar por recursos, o que, além da incerteza, absorveria energias mais bem canalizadas para o ensino, a pesquisa e a extensão.
A autonomia, ademais, protege as universidades de ingerências políticas do governo de turno ou das forças que queiram instrumentalizá-las para seus projetos políticos. Porém essa autonomia tinha por base norma infralegal (decretos) e atrelada a uma parcela do ICMS, extinto com a reforma. Se nada fosse feito, hoje estaríamos desprotegidos pelo fim desse imposto estadual.
Preocupados com isso, alguns professores começaram um trabalho silencioso com o Congresso para tentar inserir na reforma um dispositivo que preservasse essa autonomia e determinasse que o Estado a regulamente. Passamos a ter um respaldo constitucional e asseguramos a manutenção do regime atual até que venha uma emenda à Constituição Estadual sem retrocesso.
O trabalho quase se tornou inviável, pelas cenas de carteiras empilhadas bloqueando o acesso a prédios universitários, professores sendo hostilizados nos campi e notícias de constrangimentos de toda ordem. Mas a força das universidades paulistas pesou mais. Com a anuência do reitor Carlos Gilberto Carlotti Júnior e o apoio de primeira hora do professor e ministro Fernando Haddad (uspiano) e do secretário Bernard Appy (formado na USP), a Comissão de Educação do Senado, formada pelos senadores Jorge Cajuru, Dorinha e Flávio Arns, apresentou emenda para garantir o destino das verbas.
O relator, senador Eduardo Braga, prontamente a acolheu e o plenário do Senado aprovou. Da mesma maneira, retornando à Câmara dos Deputados, a emenda encontrou apoio do relator, deputado Agnaldo Ribeiro, e do presidente da Câmara, Arthur Lira. Os § 1.º e § 2.º do artigo 6.º da Emenda Constitucional consagraram essa vitória. É certo que ainda há o desafio da regulamentação estadual, mas com a garantia constitucional isso fica um tanto menos difícil.
Para chegar a essa conquista, pesaram, claro, a excelência das três universidades e a relevância do que oferecem ao País, algo que ficou mais explícito ainda durante a pandemia. Mas contou muito o trabalho dedicado de alguns professores de distintas unidades da USP. Ministros, ex-ministros, médicos, juristas, vários se dispuseram a conversar com parlamentares e expor a importância da medida. De forma discreta, não confrontacional e objetiva, como deve ser com quem defende causas justas.
Nomear todos e todas que participaram deste esforço, embora não sejam tantos assim, poderia gerar injustiças. Mas três merecem destaque: os ministros Fernando Haddad e Alexandre de Moraes (este do Supremo Tribunal Federal) e o professor Fernando Facury Scaff. A eles fica a homenagem, minha e da universidade que se leva a sério.
*
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, ONDE FOI DIRETOR ENTRE 2018 E 2022, É MINISTRO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE)