É provável que os distintos leitores já tenham se perguntado por que, afinal de contas, determinada pessoa do seu círculo de relações familiares ou sociais acredita piamente no que acredita e se comporta desta ou daquela maneira quando os fatos colidem com as bases de sustentação de suas crenças. A indagação, que, em geral, vem acompanhada por espanto ou decepção, tem sido cada vez mais frequente.
Esse fenômeno, que turva a compreensão individual da realidade e, visto sob uma perspectiva mais ampla, dificulta o debate público em termos racionais, é tão antigo quanto o próprio estudo do comportamento dos indivíduos em sociedade. No entanto, sua análise ganhou especial relevância nos últimos anos, por duas razões, basicamente. A primeira é a ascensão de governantes populistas iliberais ao poder em diversos países. Trata-se de uma cepa de políticos que agem deliberadamente para tornar permeável a fronteira entre fato e ficção, estimulando a crença numa “realidade alternativa”, que seria tão válida quanto a realidade factual. A segunda razão é a pandemia de covid-19, que levou bilhões de pessoas a pensar e agir sob o signo do medo.
Somados, esses dois fatores só potencializaram a influência do viés de confirmação, da dissonância cognitiva e do raciocínio motivado sobre a maneira como os indivíduos “enquadram” o mundo para compreendê-lo a partir de um cabedal de referências acumuladas ao longo de décadas.
O sociólogo canadense Erving Goffman, que teria completado 100 anos no sábado passado, é um dos pensadores que mais nos ajudam a compreender o que está por trás desta aparente desconexão do indivíduo com a realidade tal como ela é percebida pelos outros.
Ao tempo do nascimento de Goffman, no dia 11 de junho de 1922, em Mannville, Alberta, no oeste do Canadá, o mundo mal estava refeito da Grande Guerra. Quando de sua morte, em 19 de novembro de 1982, na Filadélfia, Estados Unidos, a internet ainda estava circunscrita aos ambientes militares. A interação entre pessoas vivendo em diferentes pontos do planeta por meio das redes sociais digitais e de aplicativos como o WhatsApp beirava a ficção científica. Não obstante, a antevisão e o brilho intelectual de Goffman – inversamente proporcional à sua vaidade pessoal – são tais que seus escritos sobre as interações cotidianas e as molduras, ou frames, por meio das quais os indivíduos “enquadram” suas visões de mundo seguem mais relevantes do que nunca. Uma pesquisa no Google Scholar revela que Erving Goffman é o terceiro sociólogo mais citado em artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, atrás apenas de Pierre Bourdieu e Karl Marx.
“Um consumado metafísico do trivial”, como bem o descreveu Bennett M. Berger no prefácio de Os quadros da experiência social, obra mais sistemática do sociólogo canadense, publicada originalmente em 1974, Goffman ampliou o campo de estudos das Ciências Sociais, que até então se debruçavam, primordialmente, sobre os grandes temas da política e da economia. Mais interessado em observar as triviais e rotineiras interações humanas no dia a dia, Goffman devotou muitos anos de sua vida acadêmica à análise dos significados dessas interações, dos quais a maioria das pessoas nem sequer tem consciência. Inaugurou, assim, uma espécie de “microssociologia”, abrindo uma avenida para novos estudos de Sociologia ao demonstrar que tudo o que ocorre numa pequena e aparentemente irrelevante interação humana “é governado por regras ou princípios em geral não declarados”. Luís Mauro Sá Martino, autor de um livro sobre Goffman, aponta que nessas “regras não declaradas” subjazem as normas implícitas de toda uma sociedade.
O “enquadramento”, portanto, tem a ver, antes de tudo, com a posição que um indivíduo busca ter no mundo, ainda que, para isso, tenha de relativizar o que entende como verdade factual. Aqui está o precioso legado do trabalho de Erving Goffman, que passou anos debruçado sobre a representação dos indivíduos na vida cotidiana e o efeito dessas aparências para uma conformação muito personalizada do que vem a ser percebido como realidade por cada um de nós. “Usamos com frequência o ‘real’ simplesmente como um termo contrastante. Quando decidimos que alguma coisa é irreal, a realidade que ela não é (grifo meu) precisa ser, necessariamente, muito real; na verdade, pode muito bem ser tanto uma dramatização dos acontecimentos quanto os próprios acontecimentos”, ensinou nosso autor. Ademais, ainda que diante de uma situação entendida como “real” por dois ou mais indivíduos, cada um pode muito bem enxergá-la em partes – os quadros da experiência – para definir qual terá maior relevância para sua própria concepção particular de “realidade”.
Passados quase 40 anos de sua morte prematura, aos 60 anos, Goffman segue como um dos intelectuais mais importantes do século 20. Suas reflexões, atualíssimas, fazem muito sentido nesta quadra particular da História, em que consensos mínimos têm sido rompidos, para enorme prejuízo de nossas relações interpessoais nas esferas pública e privada.
*
JORNALISTA