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Opinião|Estado de Coisas Inconstitucional

Por RAFFAELE DE GIORGI e JOSÉ EDUARDO FARIA E CELSO CAMPILONGO

Entre os temas novos levados ao Supremo Tribunal Federal (STF) por causa da sucessão de mudanças econômicas e sociais do País, um dos mais polêmicos é a tentativa de introdução na ordem jurídica do conceito de Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). Trata-se de saber se, diante de omissões administrativas de outros Poderes, resultando no descumprimento de direitos fundamentais, a Justiça pode agir supletivamente, impondo ao Executivo medidas para sustar a violação desses direitos.

Essa é mais uma faceta do fenômeno da judicialização da administração pública. Desde que o Supremo reconheceu o ECI como conceito jurídico, dele se valendo para afirmar que “é lícito aos juízes intervir quando a atuação ou omissão das autoridades coloca em risco direitos dos jurisdicionados”, a decisão tem sido vista como uma contribuição latino-americana para o Direito Constitucional. Mas até que ponto a Justiça pode atender às expectativas de quem vê seus direitos negados por falta de políticas públicas?

No plano dos ideais, estamos diante de valores políticos fundamentais para a coesão social, é certo. Mas o Direito opera no plano das realidades sociais e econômicas que é capaz de construir e controlar. Assim, invocar o ECI pode causar mais dificuldades à eficácia da Constituição do que se imagina. Basta fazer um exercício lógico, empregando o conceito de ECI a ele mesmo. Se assim estão as “coisas” – e, por isso, a ordem jurídica é ineficaz e o acesso à Justiça não se concretiza –, por que não decretar a inconstitucionalidade da Constituição e determinar o fechamento dos tribunais?

Historicamente, o conceito de ECI tem origem na ideia de “razão de Estado”. A consequência é que a declaração de um ECI ameaça o princípio da separação dos Poderes, além de ser paradoxal:

l Se, por exemplo, 51% dos deputados forem acusados de corrupção, o STF declarará o ECI, ordenando o fechamento do Congresso ou atribuirá a política a outros órgãos?

l Também são paradoxais os conceitos que fundamentam o ECI. Em princípio, eles justificam a intervenção do STF quando a ordem jurídica é confrontada com “litígios estruturais”, exigindo providências para os problemas decorrentes da inércia do Estado. Litígios e remédios sempre têm soluções alternativas. De onde deriva a legitimidade de um tribunal para optar por uma solução e descartar outras?

l A oposição denuncia “falhas estruturais na economia”. As consequências são desvalorização da moeda, desemprego e exclusão. Se ela levar o tema à Corte Suprema, como esta agirá: identificará o ECI ou declarará sua incompetência?

l A ideia de omissão dos governos em matéria de políticas sociais é uma das motivações para uma “Justiça proativa”. O filósofo Odo Marquard falava, ironicamente, em “competência para compensar a incompetência”. Qual a competência de uma Corte Suprema para “compensar a incompetência” do sistema político? Ela pode compensar a inércia dos outros Poderes com sua competência altiva? Quem controlaria a correção jurídica do decreto (político) de ECI? Teria a Corte competência para compensar sua própria incompetência?

l O reconhecimento de um ECI é jurídico ou político? Que sanção prevê? Persistindo a inércia, o que faz a Corte? Determina a prisão dos inertes? Mas que ilicitude praticaram? Omissão? Indenizarão aos prejudicados? Ressarcidos os danos, a inércia subsistirá?

l Por que o povo teria confiança política nos juízes e desconfiaria da capacidade dos políticos? Por que acataria o poder político dos juízes como substituto do poder convencional do sistema político? Ou seja, negar-se-ia consenso à inércia política convencional com a paradoxal ativação de um novo polo – a Corte Suprema? O que garante que a nova política também não será inerte?

Sob o pretexto de dar eficácia aos direitos fundamentais, o Estado de Coisas Inconstitucional os ameaça. Num país marcado pelos sem-teto, sem-saúde, sem-educação e sem-segurança, o conceito de ECI despreza o fato de que o sistema jurídico não tem estruturas, meios e organizações que lhe permitam corrigir essas mazelas por sentenças judiciais. Proferidas as decisões com base nesse conceito, quem as executará? O guarda da esquina? O vereador do bairro? Se a fonte jurídica da autoridade – a Constituição – é ameaçada pelo ECI, o que dizer da autoridade daqueles que podem aplicar o conceito? Quais seriam os limites e os mecanismos de controle desse poder?

Maçãs estragadas podem ser encontradas em variadas cestas. A causa do estrago pode estar nas cestas ou, então, nas próprias frutas. Nada leva a crer que a cesta de um tribunal seja mais resistente que a da política, nem que suas maçãs sejam mais duráveis. Substituir o sistema político por uma Corte Constitucional é só depositar vinho velho em frasco antigo – com rótulo falso e propaganda enganosa. É seguir na aventura com cesta frágil e maçãs podres, acarretando fardo indigesto para quem beber do vinho e comer da fruta. Quebram-se as garrafas, rompem-se as cestas, mistura-se tudo e, metáforas à parte, perde-se a diferença funcional entre o papel da política e o papel do Direito.

Pode-se concordar com o ministro Edson Fachin que a decisão do Supremo tem o efeito simbólico de ativar discussões sobre o “reconhecimento de inadequada proteção dos direitos fundamentais”. Mas não dá para ir além disso. Pobre da Corte que tem a pretensão de fabricar poder político sob a fantasia da normatividade jurídica. E que nossos argumentos não sejam fulminados por uma declaração de ECI.

* RAFFAELE DE GIORGI, JOSÉ EDUARDO FARIA E CELSO CAMPILONGO SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR TITULAR DA FACOLTÀ DI GIURISPRUDENZA DELLA UNIVERSITÀ DEL SALENTO E PROFESSORES TITULARES DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO