Muito se fala sobre o efeito sabidamente nocivo das chamadas fake news, já que, em geral, são concebidas para desorientar os destinatários, para semear intrigas e ódios, para, enfim, manipular o público em proveito de grupos de pessoas inescrupulosas. Curioso é que órgãos da grande imprensa se valem dessa prática de maneira constante e sem pudor, a pretexto da liberdade de imprensa. Como exemplo, cito o uso diário, por jornais prestigiosos, do termo “penduricalhos” para se referir a diferenças remuneratórias não satisfeitas no momento oportuno e a verbas indenizatórias pagas, sobretudo, a magistrados.
É fácil perceber que o uso daquele termo, de conotação indiscutivelmente pejorativa, longe da imparcialidade que se deve esperar dos órgãos de imprensa, se faz para incutir no leitor a sensação de que os beneficiários dos tais penduricalhos são indivíduos desprovidos de honestidade e boa-fé, que estão a se locupletar com verbas públicas.
Em nenhum momento se diz que esses pagamentos, em regra, são feitos com base legal expressa e sob o rigoroso escrutínio dos órgãos aos quais lhes cabe o controle, entre eles o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Tampouco se fala sobre a importância crucial do papel do juiz para o Estado Democrático de Direito, nem sobre as dificuldades e o sacrifício não só para ingressar nas carreiras da magistratura, mas, principalmente, para bem exercer as atividades correspondentes, que reclamam dedicação exclusiva e permanente, também em dias e horários normalmente destinados ao descanso.
Embora não se submeta a controle de jornada, o juiz, diferentemente do que se imagina, trabalha bem mais que dez horas diárias, inclusive aos fins de semana, não apenas para dar conta da quantidade de processos que lhe são confiados, mas, também, para cumprir severas metas impostas pelo CNJ.
No exercício da jurisdição, lida-se com uma quantidade enorme de litígios envolvendo o patrimônio, o poder familiar, o bem-estar de pessoas vulneráveis, a liberdade e até mesmo a vida do jurisdicionado, algo que afeta, e muito, o estado emocional do julgador.
Não se menciona, além dos aspectos acima abordados, a necessidade de prestigiar o cargo, de modo a que indivíduos de boa formação e estatura cultural, intelectual e moral por ele se sintam atraídos, apesar dos tantos sacrifícios que exige. Esse indispensável estímulo impõe que não se perca de vista a remuneração média de profissionais de semelhante preparo posicionados em escritórios de advocacia de renome, no departamento jurídico de grandes empresas, etc.
Também não é dito que o juiz deve ter condição econômico-financeira tal que lhe proporcione não a riqueza, mas indiferença a influências perniciosas, serenidade e consequente imparcialidade diante dos tantos conflitos de interesses que lhe são submetidos, muitos deles envolvendo cifras gigantescas.
Não se fala que o Judiciário brasileiro é, talvez, o mais assoberbado do planeta e que, não obstante, no geral, realiza suas atividades com razoável presteza e níveis de corrupção desprezíveis diante do número de magistrados.
Bem ao contrário, as matérias jornalísticas que têm, diariamente, abordado o tema o fazem exagerando números, generalizando situações pontuais, empregando termos pejorativos (penduricalhos, togados, dezembrada, entre outros), tudo para criar indisposição do leitor para com a magistratura brasileira.
Nesse afã, evocam-se, amiúde e sem nenhuma ponderação, dados extraídos de relatórios do Rule of Law Index, como se expressassem verdades cabais. Como se fosse realmente possível à organização estrangeira encarregada daqueles levantamentos, a partir, basicamente, de respostas a questionários submetidos a parcela ínfima da população e a supostos especialistas, aquilatar a qualidade do serviço governamental e judiciário num país de dimensões continentais como o nosso, de tantas e tão díspares realidades. Não se esclarece sobre a existência de várias críticas à metodologia empregada para aqueles levantamentos, notadamente porque expressam elevada carga subjetiva e se baseiam em número insignificante de amostras.
Tal campanha é perigosa, porque, além de achincalhar a magistratura, tem o condão de criar uma situação de descrédito da população diante do Judiciário.
Não se trata de crítica jornalística, mas de investida mentirosa, porque mascara, deturpa e solapa a realidade, além de ser propositadamente carregada de termos e estratégias voltadas a criar um estado de espírito negativo, indignado e raivoso naqueles a quem se dirigem.
Paradoxalmente, são os juízes que garantem o exercício da liberdade de imprensa, embora coibindo excessos. Essa atividade de contenção, normalmente voltada à proteção da honra alheia, parece ser a razão de tanto ressentimento.
Seja como for, é hora de os magistrados brasileiros, valendo-se dos mesmos direitos que constantemente reconhecem e asseguram em favor dos jurisdicionados, exigirem das respectivas associações de classe a adoção de providências destinadas à cessação desse grave ultraje, mediante, por exemplo, a propositura de ações para obter a reparação dos danos morais coletivos que indubitavelmente decorrem desse modelo jornalístico.
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É DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO