O Senado aprovou, em 30 de junho, o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, conhecido como o PL das fake news, fixando normas e mecanismos de transparência para os provedores de aplicação de internet (provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada), com o objetivo é garantir a liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, estabelecendo, no artigo 12, parâmetros a serem adotados pelos provedores nos procedimentos de moderação de conteúdo.
Todavia o detalhamento excessivo da atividade de moderação conflita com o Marco Civil da Internet e com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, inerentes ao devido processo legal substantivo. Ademais, além de transferir para os provedores o ônus decorrente do direito de resposta, que é do ofensor, delega competência aos provedores para a definição de conceitos jurídicos indeterminados e para tipificação de crimes, tarefas que são de Estado.
Conforme o Marco Civil da Internet, os provedores de aplicação têm autonomia para a adoção dos mecanismos de moderação que julgarem necessários aos seus modelos de negócio, a fim de coibirem as fake news, o que fazem de forma globalizada. Não é razoável, portanto, a imposição de regras inexequíveis ou onerosas aos provedores. A modificação radical dos seus modelos de negócio, além de ofensiva à livre-iniciativa e à livre concorrência, seria desproporcional.
Não se nega a aplicabilidade, no caso, do devido processo e dos princípios do contraditório e da ampla defesa, que são seus corolários. Mas o que precisa ser considerado é que a moderação de conteúdo não deve estar sujeita a um contraditório prévio. As medidas de moderação reclamam ações imediatas, com a adoção do contraditório diferido ou postergado. Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assentada num rol de precedentes, reconhece a constitucionalidade do contraditório diferido em variadas situações, inclusive quando justificada a urgência da medida (v.g. ADI 3.591 e SS 3.490).
Assim, considerada a relevância do interesse público protegido pelo PL 2.630, é razoável que a adoção de medidas acautelatórias, pelos provedores de aplicação de internet, no exercício de seu poder de moderação, independa de um contraditório prévio. É que é preciso afastar, de pronto, o compartilhamento de informações falsas, maliciosas e criminosas, além da circulação de conteúdos violadores das regras estabelecidas pelos provedores de aplicação entre os seus usuários, regras que vedam, por exemplo, exploração sexual infantil, discurso de ódio e bullying, entre tantos outros graves abusos.
Os provedores de aplicação são produtos da 4.ª Revolução Industrial, a revolução dos computadores, dos smartphones, da internet. O ambiente dinâmico em que operam exige a adoção de medidas de moderação imediatas, com o objetivo de coibir a disseminação da falsidade, que se reproduz em proporção geométrica, muitas vezes por meio de robôs, com conteúdos que desequilibram pleitos eleitorais e arruínam, em horas, a reputação de pessoas e instituições públicas e privadas.
A comunicação, que se fazia em horas ou em dias, hoje se faz de forma instantânea e globalizada. A notificação e a defesa prévia do usuário constituem, portanto, medida desproporcional, quando é possível a utilização do contraditório diferido, meio mais eficaz e ajustado ao mundo digital, para a consecução do devido processo legal.
É certo que o PL 2.630 prevê hipóteses nas quais a notificação e a defesa prévia serão dispensadas. Ainda assim, o dispositivo é desproporcional, pois não estabelece parâmetros de conduta determinados. Atribui-se aos provedores de aplicação o ônus de definir conceitos indeterminados, além da complexa tarefa de interpretar e aplicar o aparato normativo de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes e a legislação que tipifica os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, atividades próprias de Estado.
O PL 2.630 impõe aos provedores, ainda, assegurar ao ofendido o direito de resposta. Ora, somente o ofensor pode ser responsabilizado pela adoção dos procedimentos necessários à consecução do direito de resposta.
Melhor seria que se adotasse a regra da Lei 13.188/2015, que regulamenta o direito de resposta em matéria publicada por veículo de comunicação social, ou a previsão do artigo 58, parágrafo 1.º, da Lei 9.504/97, a Lei das Eleições.
Também contraria o ordenamento jurídico ao criar hipótese de direito de resposta sem manifestação de interesse da parte do ofendido.
Certo é que estamos todos empenhados em afastar do mundo das coisas e do Direito as fake news e suas nefastas consequências, observadas as garantias constitucionais, mas com a compreensão de que o mundo digital não é como o mundo analógico.
*ADVOGADO, PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB) E DA PUC-MG, MEMBRO DA ACADEMIA INTERNACIONAL DE DIREITO E ECONOMIA, FOI PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL